O Estado de S. Paulo

Novo álbum

Ed Motta diz ser um “imitador de americanos”.

- Julio Maria

Antes do assunto, há que se considerar uma coragem em Ed Motta. Uma postura pela qual ele paga algum preço duas ou três vezes por ano, em geral quando a boca diz algo sem um contexto muito visível, mas que agora responde pelo principal traço que o tem feito escolher um caminho raro a um músico brasileiro que parece conhecer exatamente aquilo que não quer. A frase que Ed diz aqui, e que vai contextual­izar, é forte e atravessa a alma de quem o quer como representa­nte da amálgama racial brasileira na Europa, símbolo da riqueza harmônica pós-bossa nova nos Estados Unidos, herdeiro do sangue soul deixado pelo tio Tim Maia. Esqueçam. “Eu não me sinto um representa­nte da música brasileira de jeito algum. Não é isso o que eu quero para mim.” E não é tudo. Se há sobreviven­tes na sala, ele tem o golpe de misericórd­ia. “Eu prefiro ser o imitador dos norte-americanos que sempre fui. O que tento fazer desde sempre é isso, imitar os norte-americanos.”

Antes de Ed Motta, talvez apenas o pianista Dick Farney, dos nomes de vulto, tenha tido a mesma decisão antes de se convencer de que cantar em português seria mais negócio do que inspirar-se em Frank Sinatra para todo o sempre. A carreira de Ed Motta dá sinais de que faz o caminho contrário, o português em estado crescente de extinção, desde sua origem, quando ele tinha 16 anos e pensava em tudo como cantor do grupo Conexão Japeri. “Gostava de música americana, ia pro baile dançar todo fim de semana”, dizia em 1988, abrindo Manuel. No mesmo álbum, A Rua trazia o garoto cantando versos em inglês, emulando James Brown como se fosse um nativo do Harlem. “E eu não sabia falar inglês.”

Agora, 30 anos depois do Conexão Japeri, Ed Motta, além de saber o que não quer, começa a desenhar um caminho que diz só ter encontrado em sua nova conexão, aos 47 anos: Criterion of

the Sense. A língua portuguesa sempre foi um desconfort­o, mesmo em trabalhos comercialm­ente vitoriosos, como o Manual Prático para Festas, Bailes e Afins (vol. 1), de 1998, que ele coloca longe de suas realizaçõe­s pessoais. “Aquilo foi bom para a gravadora, não para mim. As canções foram descaracte­rizadas. A essência está ali, mas a moldura é de plástico. A gravadora (Universal) contratou Liminha, que é um grande cara, mas que teve de fazer o que eles pediram.” Os discos se sucederam entre inglês e português que podia criar alguma confusão em um posicionam­ento de Ed para ele mesmo. Afinal, que língua era a sua?

Dwitza e Poptical, 2003 e 2005, vieram em português. Em 2008, seu primeiro em inglês,

Chapter 9. O seguinte, Piquenique, voltou a ser em português.

AOR, de 2013, tinha letras em português, mas com um pensamento musical claramente desenvolvi­do em inglês.

Nada ainda soava tão confortáve­l em seu português de conveniênc­ia. Nas entrevista­s, Ed Motta passou a falar da ditadura da letra na canção brasileira. Compor letras, para ele, era apenas

um pretexto para se fazer música. O que importava era o som. “Sempre critiquei essa hipervalor­ização do texto.”

O ponto de Criterion é esse. Pela primeira vez, Ed Motta encontra uma narrativa que desvia do tema universal que rege a inspiração de criadores de todo o planeta. Ed não fala de amor, mas de situações, de imagens cinematogr­áficas, de personagen­s. Faz crônica policial, ficção científica, conspiraçõ­es espaciais.

Sua cabeça virou uma chave saindo do modo compositor e para o modo roteirista, uma postura que muda tudo. The Tiki’s Broken There, por exemplo, fala de uma trama que envolve a quebra de um Tiki, um totem da polinésia. “Indo bem no interior do vale / Miss Shore sai pela porta / Suando bastante / O papiro escondido dentro de sua casa / Não foi culpa dela, porque o Tikis estava quebrado”, uma tradução livre para a trama que ele conta em inglês.

O que seria um pensamento mais simples aparece em Your Satisfacti­on is Mine. Mas tudo é sugerido, nada concretiza­do. “Olhos vermelhos, carro esfumaçado / A velha regra é / Nunca pronuncie meu nome lá.” Ed fala

de sua investigaç­ão para se chegar a esse resultado. “Eu chego a assistir a um filme por dia, filmes clássicos, alguns dos anos 80. Essas ideias vêm de garoto, quando já assistia muito, pelo menos a um filme noir por dia. O que estou fazendo agora, deveria ter feito há 20 anos.” Ele fala mais de suas indisposiç­ão com a poética clássica da música brasileira. “Eu fiquei antipatiza­do no mundo da letra. A ideia da grande letra da música brasileira nunca me interessou. A moça sentada na cabeceira, vestida de renda, olhando a fazenda. Esse imaginário brejeiro não me toca.”

Há uma fala sua que, fora de contexto, é daquelas prontas para torná-lo alvo por uma suposta arrogância. “Quando penso em escrever algo, imediatame­nte me vem o inglês. E eu só leio em inglês, o tempo todo. É muito raro eu ler alguma coisa em português.” Se tivesse de escolher 100 discos para levar a outro planeta, diz Ed, apenas quatro estariam em sua bagagem. Coisas, de Moacir Santos; Matita Perê, de Tom Jobim; Maria Fumaça, da Banda Black Rio; e o álbum de Robson Jorge e Lincoln Olivetti, de 1982. Algo sobre João Gilberto e seu cultuado Chega de Saudade? “Passa longe”, ele diz. Há uma explicação geracional sim por seu culto aos norte-americanos. “Sou parte de uma juventude que ficava muito ligada no que era feito na Inglaterra e nos Estados Unidos. Isso era algo natural. A ideia do nacionalis­mo acaba sendo limitadora para mim, mas entendo como sendo uma proteção de mercado.” E volta a dizer a essa altura da conversa. “Eu sempre quis ser americano. Sei que são politicame­nte horrorosos, mas musicalmen­te esses caras habitam algum outro planeta.”

Há um pensamento no mundo pop de que quanto mais elaborado um trabalho, com harmonia sofisticad­a ou pesquisas de ritmos que saiam das soluções mais previsívei­s, menor será sua abrangênci­a popular. Então, quanto mais limpo for de lugares incomuns, maior será a aceitação de uma boa canção. Stevie Wonder seria um raro exemplo de um criador que jogaria nas duas posições. Faz música profunda para uma base planetária de fãs. “Mais ou menos, ele também sabe o que está fazendo”, contrapõe Ed. “Eu continuo não muito preocupado com essa comunicaçã­o. Mesmo quando cantava em português, sempre achei que a música que fazia era internacio­nal. Fui aprender então que a língua do mundo é o inglês. O ABBA (grupo sueco) canta em inglês, o Scorpions (banda de metal alemã) também.”

As cine letras de Criterion of the Sense também funcionam porque a música que resulta dessa safra de Ed as conduz pelo espaço. A qualidade de gravação do disco está em padrões fora da curva do que se ouve em materiais digitais (CDs ou faixas virtuais comprimida­s e de graves ‘invisíveis’). Tudo parece sair de um vinil europeu recém-lançado. Há ainda alguma contaminaç­ão que parece remanescen­te de AOR ou do ambiente de seu Baile do Flashback, a compilação de canções setentista­s que Ed refez para sair em turnê. Lost Connection to Prague é deliciosam­ente sexy, com um rhodes piano e solos de guitarra fusion de Thiago Arruda. Swetest Berry, outra pop disco cheia de viradas, é irresistív­el na primeira audição. No terceiro tema, Novice Never Noticed, já há bons argumentos para se considerar esse um dos melhores álbuns de Ed Motta. E isso aos que também podem não entender suas letras. Elas continuam sendo menores do que sua brutal musicalida­de.

Eu prefiro ser o imitador dos americanos que sempre fui. O que tento fazer desde sempre é imitá-los” Sei que os americanos são péssimos na política, mas na música esses caras habitam algum outro planeta”

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UANDERSON FERNANDES/ESTADÃO Ed Motta. ‘Eu fiquei antipatiza­do no mundo da letra. A ideia da grande letra da música brasileira nunca me interessou’
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ED MOTTA ‘Criterion of the Sense’ Must Have / Preço médio: R$ 30

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