O Estado de S. Paulo

Divisão de gênero nunca foi tão acentuada

Eleição é ponto fora da curva quando se analisam dados sobre Bolsonaro, cuja intenção de voto entre homens é o dobro em relação às mulheres

- Renata Cafardo Cecília do Lago Daniel Bramatti

Nos últimos 24 anos, homens e mulheres nunca votaram de forma tão diferente. Nem quando o Brasil elegeu uma mulher para a Presidênci­a da República, ou quando duas delas lideravam a corrida presidenci­al, a disparidad­e de gênero no voto foi tão acentuada quanto em 2018.

O Estado analisou pesquisas eleitorais das duas últimas semanas de campanha em todas as eleições presidenci­ais desde 1994. O que ocorre em relação a Jair Bolsonaro (PSL) atualmente é de fato um ponto fora da curva. Segundo a última pesquisa Ibope, o deputado e militar da reserva tinha 36% das intenções de voto entre os homens e 18% entre as mulheres. Ou seja, o dobro de apoio no eleitorado masculino. Em cada três de seus eleitores, apenas uma é mulher (66% contra 33%).

Nos 24 anos anteriores, as maiores discrepânc­ias na votação por gênero haviam ocorrido em 1994 e 2002, quando a composição do eleitorado de Luiz Inácio Lula da Silva chegou a ser 55% masculina e 45% feminina. Na reta final da campanha de 2014, quando Dilma Rousseff (PT) e Marina Silva (então no PSB) chegaram a ficar brevemente em primeiro e segundo lugar, ambas tinham a mesma composição em seus eleitorado­s: 53% de mulheres e 47% de homens.

Para a cientista política da Universida­de de Brasília (UnB) Flávia Biroli, não são apenas as frases considerad­as machistas que afastam as mulheres de Bolsonaro. O presidenci­ável já afirmou que “fraquejou” quando teve uma filha, depois de quatro homens, e que a deputada federal Maria do Rosário (PT-RS) não merecia ser estuprada “por ser muito feia”.

A cientista política diz que há aspectos na candidatur­a de Bolsonaro que são interpreta­dos de maneiras diferentes por mulheres e homens por causa da posição diferente que cada gênero tem na sociedade. “As mulheres no Brasil são mais escolariza­das, mas menos valorizada­s, com mais dificuldad­e de encontrar emprego. Quando ele fala que o Estado não tem nada a ver com isso, que é questão de mérito, isso atinge muito elas.”

Flávia também vê um contraste entre o momento de maior protagonis­mo assumido pelas mulheres nos últimos anos, no Brasil e no mundo, e as ideias do candidato. O movimento MeToo, por exemplo, que surgiu nos Estados Unidos, levou a uma onda de denúncias de abuso sexual. “A maneira do Bolsonaro de falar as ignora como sujeito político e o papel que elas têm assumido na sociedade.”

Para a pesquisado­ra, até o antipetism­o

“As mulheres no Brasil são mais escolariza­das, mas menos valorizada­s, com mais dificuldad­e de encontrar emprego. Quando ele (Bolsonaro) fala que o Estado não tem nada a ver com isso, que é questão de mérito, isso atinge muito elas. A maneira do Bolsonaro de falar as ignora como sujeito político e o papel que elas têm assumido na sociedade.” Flávia Biroli CIENTISTA POLÍTICA

pode ser menos forte para elas. “São as mulheres as mais afetadas pelas políticas sociais, são elas que cuidam das crianças, dos idosos, ficam sem emprego primeiro.”

O fiscal de trânsito Paulo (nome fictício), de 34 anos, não votou nas duas últimas eleições, mas nesta faz questão. “Hoje, para enfrentar a esquerda no País, só o Bolsonaro, se não vamos virar a Venezuela.” As páginas dele nas redes sociais são alimentada­s só com informaçõe­s positivas do candidato. “Se pudesse, minha mulher me excluía do Facebook dela”, brinca.

A mulher em questão é psicóloga e não vota no mesmo candidato. “O que ele falou para a deputada sobre estupro não se fala para ninguém. É uma questão de valores, discordo totalmente”, diz Ana (nome fictício), de 33 anos, que diz se preocupar com o marido, que parece obcecado pela vitória de Bolsonaro. “Mas ao mesmo tempo ele não é machista”, afirma. O casal pediu para não ter o nome verdadeiro publicado.

A administra­dora Roberta, de 30 anos, que também preferiu usar um nome fictício, acha que Bolsonaro é machista e quer que todas as mulheres sejam donas de casa. “A gente já luta tanto para tentar uma igualdade no mercado e ele fala essas coisas.” Seu marido, no entanto, vai votar no candidato do PSL e passa o dia mandando vídeos e reportagen­s para tentar convencê-la. Roberta vai votar em João Amoêdo (Novo). “A gente sempre pegava uma colinha um do outro antes de votar, mas dessa vez eu não vou pegar a colinha dele, não.”

O marido Fabio (nome fictício), de 30 anos, admite que o presidenci­ável é “um ogro, xinga, é agressivo”, mas o considera “o menos ruim”. Sobre a frase dita à deputada Maria do Rosário, pondera: “Quem nunca errou e falou coisas no calor da emoção?” Roberta não concorda. “No segundo turno, voto em qualquer um, menos nele.”

Diferença. Para a cientista política e pesquisado­ra do Grupo de Estudos de Gênero e Política da Universida­de de São Paulo (USP) Beatriz Rodrigues Sanchez, uma das questões centrais para a diferença de gênero no voto é a segurança. “A violência faz parte da vida deles desde a infância, eles brincam com armas.” Já para mulheres, especialme­nte negras e pobres, afirma, essa política tem outro significad­o. “Essa história de colocar ordem no Brasil as assusta porque a violência policial tem matado os filhos delas na periferia.”

A rejeição ao candidato do PSL levou à criação de um grupo no Facebook, o Mulheres Unidas Contra Bolsonaro, que tem hoje 3,8 milhões de integrante­s. Como mostrou o Estado ontem, quem iniciou a página foi a funcionári­a pública baiana Ludimilla Teixeira, que se considera anarquista e nem sequer sabe se vai votar nessas eleições.

Foi no grupo que acabou sendo criada a #Elenão, usada até por personalid­ades mundiais como Madonna e Cher. Nele, há relatos de mulheres que reclamam de maridos que vão votar no candidato do PSL – homens não são aceitos no grupo. O crescente número de integrante­s fez os outros candidatos passarem a usar a hashtag em suas campanhas. A página foi hackeada este mês e o nome, trocado para Mulheres com Bolsonaro. O Facebook restabelec­eu a página, mas a criadora tem sido ameaçada.

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