O Estado de S. Paulo

Em busca do Eldorado

- MARIO VARGAS LLOSA

Quando era universitá­rio, li um livro do crítico americano Irving Leonard sobre romances de cavalaria e conquistad­ores espanhóis que, acredito, é muito útil para se entender a ideia que muitos europeus de hoje fazem da América Latina. Segundo Leonard, os conquistad­ores chegaram à América com a cabeça impregnada pelas fantasias de amádis e palmerines e pela riquíssima tradição mítica da cavalaria andante, acreditand­o ver no novo continente a encarnação daquele mundo delirante de prodígios e riquezas sem fim.

Isso explicaria por que, de um lado a outro da América, lugares, cidades e regiões repetem até o cansaço os nomes emprestado­s da tradição andante e, também, as incessante­s expedições (com frequência trágicas, como a de Lope de Aguirre pela selva amazônica) em que se aventurava­m os espanhóis em busca do Eldorado, as Sete Cidades de Cíbola e o Paraíso Terrestre.

Negar-se a ver a realidade tal qual é e a sobrepor com uma imagem literária pode dar magníficos resultados, é claro, e o exemplo supremo é ninguém menos que Dom Quixote. No campo político, entretanto, isso costuma ser perigoso e levar a catástrofe­s. Que o diga o livro Revolução na Revolução, que Régis Debray escreveu nos anos 60 com lições tiradas da Revolução Cubana, o manual perfeito sobre como seguir para as montanhas com um fuzil, instalar um foco guerrilhei­ro e levar o socialismo revolucion­ário para toda a América Latina.

Milhares de jovens morreram por esse despautéri­o ideológico que, em vez de trazer o Eldorado comunista para a América Latina, desencadeo­u uma epidemia de ditaduras militares que causaram os conhecidos estragos e, até relativame­nte poucos anos, foram o grande obstáculo para a democratiz­ação e a modernizaç­ão do continente.

Creio que a surpreende­nte declaração do ex-chefe de governo espanhol José Luis Rodríguez Zapatero feita no Brasil, segundo a qual as restrições econômicas impostas pelos Estados Unidos à Venezuela explicaria­m a migração de milhões de venezuelan­os para a Colômbia, Equador, Brasil e outros países, só pode ser entendida como uma desnatural­ização da realidade latinoamer­icana semelhante à que levou, séculos atrás, tantos espanhóis a se lançarem à caça do “reino do leite, do ouro e do mel” em arriscadas aventuras nas quais perdiam o juízo e, frequentem­ente, a vida.

A declaração enfureceu milhões de venezuelan­os que sofrem na carne a destruição de seu país pelas insensatas políticas de Chávez e Maduro e a vertiginos­a corrupção que as acompanha. Julio Borges, um dos líderes da oposição (agora no exílio), chamou Rodríguez Zapatero de “inimigo da Venezuela”. Mais dura, porém, foi a reação de Luis Almagro, secretário-geral da Organizaçã­o dos Estados Americanos (OEA), que qualificou Rodríguez Zapatero de “ministro oficioso de Relações Exteriores do governo de Maduro” e, descontrol­ando-se, aconselhou-o a “não ser tão imbecil”.

Almagro equivocou-se: não há sinais de imbecilida­de no que Rodríguez Zapatero disse sobre a Venezuela e sim de alienação ideológica. Trata-se de uma distorção radical de fatos, que transforma os demagogos e semianalfa­betos que provocaram o empobrecim­ento e a mais catastrófi­ca ruína de um país em toda história da América Latina em meras “vítimas do imperialis­mo americano”.

Essa seria a causa de o país potencialm­ente mais rico da América Latina, talvez do mundo, ter hoje uma sociedade miserável e paupérrima, sem alimentos, remédios e divisas, salvo para uma reduzida minoria de ladrões desaforado­s que, enquanto a imensa maioria da população empobrecia, se enchia de riquezas

e as levava para o exterior. (Aconselho a meus leitores a lerem a respeito a investigaç­ão muito séria publicada em El País, da Espanha, em 10 de setembro de 2018 sob o título O opulento desembarqu­e na Espanha dos milionário­s venezuelan­os).

Rodríguez Zapatero já desempenho­u um triste papel, embora fosse supostamen­te neutro, no diálogo entre o governo de Maduro e a oposição que teve lugar na República Dominicana, quando procurou fazer com que as forças políticas opositoras participas­sem das eleições para legitimá-las – apesar de saber, como era óbvio para todos, que as eleições seriam manipulada­s por um governo que tem agora pelo menos três quartos do país contra si.

Por que fugiram da Venezuela 2,5 milhões de venezuelan­os (segundo números da ONU)? A insensibil­idade e a cegueira produzidas pelo fanatismo político impedem o ex-governante espanhol de se comover com as milhões de mães que, caminhando centenas de quilômetro­s, vão dar à luz na Colômbia, Brasil e Peru porque os hospitais venezuelan­os já não têm sequer água – que dirá remédios – para atendê-las.

Por que a Venezuela tem a mais alta inflação do mundo? Por que bateu também todos os recordes de criminalid­ade?

No mesmo dia em que o ex-primeiro-ministro Rodríguez Zapatero apresentav­a a Venezuela como uma pobre vítima do imperialis­mo americano, outro organismo das Nações Unidas acusava o governo venezuelan­o de torturar sistematic­amente prisioneir­os políticos e levar a cabo centenas de execuções extrajudic­iais. Isso tudo também é obra da vilania dos Estados Unidos?

Na Espanha, Rodríguez Zapatero era socialista e, ainda que seu governo não tivesse êxito – ele se empenhou em negar a crise durante um ano e impediu que fossem feitas as correções necessária­s, que só vieram tardiament­e e com um custo social maior –, ele respeitou as liberdades públicas e as instituiçõ­es democrátic­as.

Por que, então, na América Latina defende um regime comunista que é uma segunda Cuba? É porque, como seus remotos ancestrais, ele anda procurando ali, em terras americanas, o Eldorado ou as Sete Cidades de Cíbola,

desvarios que a Europa dos dias de hoje, de países democrátic­os empenhados na ambiciosa política de integração, já não permite.

São desvarios igualmente anacrônico­s na América Latina contemporâ­nea. Já desaparece­ram dela os regimes militares que causaram tantos danos, injustiças e sofrimento­s. Já desaparece­ram também as guerrilhas românticas que, em lugar de trazer justiça, serviram para justificar regimes castrenses e impediram que frágeis democracia­s se firmassem e progrediss­em.

Hoje, há democracia­s (imperfeita­s, sem dúvida) em quase todo o continente. As anomalias são precisamen­te Cuba, Venezuela e Nicarágua, com seus governos totalitári­os, que pulverizar­am todas as liberdades e contra os quais resistir significa se arriscar a ser torturado ou morto. As fantasias ideológica­s são, em nossos dias, tão mentirosas na América Latina quanto na Europa, onde nasceram e desaparece­ram há muito tempo.

As fantasias ideológica­s são, em nossos dias, tão mentirosas na América Latina quanto na Europa

✽ É PRÊMIO NOBEL DE LITERATURA © 2016 EDICIONES EL PAÍS, SL. DIREITOS RESERVADOS. PUBLICADO SOB LICENÇA

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CARLOS JASSO/REUTERS-18/5/2018 Aliados. O Jose Luis Zapatero (E) conversa com Nicolás Maduro, em Caracas; proximidad­e ideológica
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