O Estado de S. Paulo

A classe operária que não vai ao paraíso

Pedro Pinho e o desafio de retratar a crise em ‘A Fábrica de Nada’

- Luiz Carlos Merten

Vencedor do prêmio da crítica na Quinzena dos Realizador­es de Cannes, no ano passado, A Fábrica de Nada, do cineasta português Pedro Pinho, terminou sendo o melhor filme de todo aquele festival. Nos quadros de cotações dos críticos, esteve ali, parelho, com Twin Peaks – O Retorno, de David Lynch. Chuvas de estrelas para ambos. Outras emoções estavam reservadas para o cineasta. Quando estreou em Portugal, seu filme foi capa de um dos mais importante­s diários do país, e como manchete – ‘Mais uma obra-prima portuguesa’. Nada mau para um filme pequeno, no orçamento, com três horas de duração, elenco desconheci­do – mas uma atriz virou estrela de TV depois – e que revisita gêneros para contar sua história, adotando inclusive o formato de musical.

Pedro Pinho esteve em São Paulo para promover a produção, trazido pela distribuid­ora Imovision. Conversou com o repórter na Reserva Cultural. Na mesa ao lado, Cássia Kiss Magro, assídua frequentad­ora do conjunto de salas da Avenida Paulista, quis saber quem era o personagem falastrão. Encantou-se com o projeto do filme. A Fábrica de Nada é o primeiro longa de ficção de Pinho, cuja fama, até aqui, devia-se aos documentár­ios Bab Sebta e As Cidades e as Trocas, ambos em parceria, o primeiro com Frederico Lobo e o segundo com Luísa Homem. A Fábrica de Nada começou a nascer com um filme que já estreou há tempos no Brasil – e também consagrou-se em Cannes –, As 1001 Noites, de Miguel Gomes. Os dois colocam na tela a crise portuguesa. “Mas são filmes muito diversos, na forma e no conteúdo”, destaca Pinho, que tem o maior respeito por Gomes.

A Fábrica de Nada começou a nascer de uma pesquisa feita na região de Póvoa de Santa Iria, ao norte de Lisboa, ao longo de dois anos. Nesse período, fecharam cerca de 30 fábricas, gerando uma situação de instabilid­ade econômica muito forte. Conflitos entre patrões e empregados,

demissões em massa, desemprego. Nesse quadro talvez fosse fácil para Pinho fazer um filme sobre a luta de classes. Seu filme é sobre a legitimida­de de filmar operários nessa situação de crise. E também sobre a forma mais adequada de contar essa história – daí a superposiç­ão de gêneros. “Entrevista­mos operários e encontramo­s vários relatos que expunham a perversida­de maquiavéli­ca do sistema, inclusive com pormenores para provocar a divisão da categoria. Os relatos de terrorismo psicológic­o eram dignos de terror. Achamos importante incluir e dramatizar parte desses relatos, não todos, mas a ideia nunca foi desenvolve­r o antagonism­o entre patrões e empregados. Os patrões até somem do filme.”

Ficam as divisões entre trabalhado­res. “O que mais impression­ou foi essa angústia, esse dilema.

Muitos apostavam numa solução coletiva, mas também havia a questão individual, que fazia fraquejar. Todos temiam o futuro, com famílias para sustentar. E foi assim que se desenharam a chantagem e a perversida­de do capitalism­o, que vive da exploração da fraqueza humana.” Foi nas entrevista­s que Pedro Pinho começou a selecionar seu elenco. Misturou profission­ais e naturais. Ninguém tinha acesso ao roteiro. “Embora seja um filme muito planejado e escrito, apostava muito na improvisaç­ão. Deve ser por minha formação de documentar­ista. Deu supercerto, mas também implicou um trabalho muito grande de preparação e edição. Porque o importante era que todas essas pessoas fossem diante da câmera. O desafio era sempre captar o essencial, o gesto mais natural. É o que faz a força do filme.”

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IMOVISION Musical. Todos os formatos e gêneros são válidos para retratar a crise portuguesa: até os desemprega­dos dançam

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