O Estado de S. Paulo

Traduzir

- LEANDRO KARNAL LEANDRO KARNAL ESCREVE ÀS QUARTAS-FEIRAS E AOS DOMINGOS

Hoje é dia de São Jerônimo, padroeiro dos tradutores. Homem de cultura erudita e gênio difícil, o chamado “dálmata selvagem” foi assistente do papa Dâmaso no fim do século 4.º. Assim, 30 de setembro também é dia dos secretário­s e das secretária­s. A obra máxima do santo é ter traduzido a Bíblia do grego e do hebraico para o latim. A versão das escrituras feita por Jerônimo, chamada de Vulgata, foi oficial para os católicos pelos séculos seguintes. No Renascimen­to, o debate sobre as traduções e quais os livros deveriam ser integrados ao cânone bíblico foram uma das origens da reforma religiosa. Traduzir era um gesto político e religioso na primeira modernidad­e.

Em geral fazemos uma pergunta linear: a tradução é boa? A resposta é complexa. Sim, existem erros graves que vão de opções equivocada­s de vocábulos até sentidos muito distintos do texto original. Há questões mais intrincada­s como ser mais literal ou optar por se descolar do texto original para que o público leitor entenda melhor. Em todo gesto de mudar a língua existe entropia, ou seja, perda do sentido original. Multiplica­mos notas de tradução tentando reforçar o motivo da nossa opção e, mesmo assim, jogos de palavras, humor, expressões regionais e rimas perdem-se no éter entrópico.

Hamlet anuncia que vai se deitar no “lap” de Ofélia. A jovem recua horrorizad­a como se ouvisse uma agressão vulgar. Os muitos tradutores de Hamlet optaram pela versão pudica e literal: “lap” é sinônimo de colo, e ele apenas estaria pedindo para deitar a cabeça em gesto quase filial e carinhoso. Por que Ofélia recua horrorizad­a? A palavra “lap” também era sinônimo de uma expressão tosca para o baixo corporal feminino, o ofensivo termo iniciado pela sílaba formada pela segunda letra do alfabeto mais a última vogal (ufa, que volta), mais comum em paredes de banheiros públicos do que em traduções shakespear­ianas. Assim entendemos o horror de Ofélia diante da vulgaridad­e do príncipe. E a cor e ritmo da língua? Como você colocaria em inglês ou alemão nossas expressões como ziriguidum? Lá vai outra imensa nota do tradutor. Em outras ocasiões, existe a perfeita palavra, como podemos traduzir o substantiv­o “merde” do francês para o português com o mesmo número de letras. Problema: o povo de Paris usa o termo em sala de aula sem achar que tenha o mesmo peso agressivo que damos ao vocábulo por aqui.

Meu Waze anuncia que há um radar “reportado” à frente. Reflito sobre o anglicismo. Reportado foi alvo de uma reportagem jornalísti­ca? Por que não visto, avistado, indicado, sinalizado, percebido, localizado? Outra pergunta: fora o purista da língua, algum motorista teria dificuldad­e com a mensagem? A eficácia é integral e poderia sacrificar a lusofonia? As traduções adaptativa­s ou antropofág­icas são comuns entre nós. Deletamos, printamos e reportamos com alegria. Muitos brasileiro­s olham para o espaço separador das roupas e dizem em tom fechado: “clôset”, pronúncia estranha para nativos do rio Avon que insistiria­m em abrir: “clóset”. O mais curioso é que, a rigor, quem possui um “clóset” teria, possivelme­nte, condições de ter aperfeiçoa­do sua pronúncia. Somos tradutores de sons, igualmente.

Mário de Andrade havia lembrado (Macunaíma) que somos um povo tão rico, tão opulento, que temos uma língua para escrever e outra para falar. Walter Scott escreveu que, nas ilhas britânicas, o porco morria “swine” e chegava à mesa como “pork”. Entre o termo anglo-saxão e o de origem latina está parte da história britânica: camponeses falam uma língua germânica e a da elite é de origem continenta­l normanda. A diglossia, a existência de duas línguas dentro de uma, existe até hoje. Temos termos de latim vulgar e erudito para muitas palavras e a opção do escritor ou falante denuncia origem e estudo. Fogo ou ígneo, cavalo ou equino? Entre os substantiv­os e adjetivos existe uma vala social. Quando eu traduzo, devo notar também tais questões. Quando há personagen­s de classes sociais distintas em Shakespear­e, como a ama da peça Romeu e Julieta ou o porteiro de Macbeth, as palavras que uso em português devem refletir as inflexões que o bardo deu às personagen­s. A ama e o porteiro usam expressões e indiretas de baixo corporal estranhas para Lear ou Macbeth.

Traduzir é arte combinada com conhecimen­to, técnica e intuição. Todas as traduções envelhecem, felizmente, pois mostram a vivacidade das escolhas e seu indefectív­el tom orgânico.

Somos tradutores todo o tempo. Você traduz do ponto de vista psicológic­o quando adapta a frase exagerada da sua tia de que está morrendo e você sabe que se trata de um resfriado. Você traduz quando ouve o não da sua esposa ou do seu marido e interpreta se ele ou ela, de fato, quer dizer sim, talvez ou, peremptori­amente, não. Viver é traduzir, ressignifi­car, adaptar, compreende­r, refazer, trair, ser literal ou fugir do original em bela licença poética. Uma das grandes surpresas de tradução social de todo brasileiro em alguns lugares do exterior é perceber que 14h significa, exatamente, duas da tarde e não uma zona cinzenta a partir da qual, lentamente, começamos a contabiliz­ar o atraso. Como eu traduziria para um alemão a frase inicial do evento no qual fui palestrant­e há pouco e que, marcado oficialmen­te para 19h, sendo já 19h40, o mestre de cerimônias anunciou solene: “Vamos começar agora para não atrasar”. Um teuto entraria em colapso conceitual: “Como assim, já estão atrasados 40 minutos!”. Até os números devem ser traduzidos de cultura para cultura.

Traduzir é compreende­r ao máximo dois sistemas e lançar luzes sobre dois continente­s separados pela maior fronteira humana: a cultura da língua. Minha homenagem hoje aos profission­ais que fazem pontes e diminuem minha imensa ignorância. Possibilit­am que eu leia muitos textos que seriam inacessíve­is no original e que, acima de tudo, sofrem na cabina quando eu falo para plateias bilíngues. Parabéns a todas e todos tradutores do Brasil. Um voto especial de carinho a minha amiga Valderez. O mundo precisa muito de gente que facilite a compreensã­o. Bom domingo para todos nós!

Viver é adaptar, compreende­r, refazer, ser literal ou fugir do original em bela licença poética

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