O Estado de S. Paulo

Aliás, O MESTRE DO ABSURDO

- André Cáceres

“Aos 16 anos matei meu professor de lógica. Invocando a legítima defesa – e qual defesa seria mais legítima? – logrei ser absolvido por cinco votos a dois, e fui morar sob uma ponte do Sena, embora nunca tenha estado em Paris.” Assim começa A Lua Vem da Ásia (1956), do escritor surrealist­a brasileiro Walter Campos de Carvalho (1916-1998), uma espécie de René Magritte da literatura. Esse incipit sintetiza sua literatura: uma prosa despida de lógica em prol da estética. Com exceção de Tribo e Banda Forra, dois livros anteriores abjurados por ele e nunca mais publicados, toda a obra do autor vem sendo reeditada pela Autêntica nos últimos meses.

Mais recente lançamento, A Chuva Imóvel junta-se às novelas Vaca de Nariz Sutil e A Lua Vem da Ásia nas prateleira­s, mas o leitor pode esperar ainda pelo derradeiro livro, Púcaro Búlgaro, além de O Espantalho Inquieto, em que Noel Arantes compila a fortuna crítica da obra, fragmentos do autor, depoimento­s e outros textos. Campos teve também seus raros contos publicados recentemen­te em Quarteto Mágico, organizado por Miguel Conde, que o coloca ao lado de outros autores de sua família literária absurdista: Murilo Rubião, José J. Veiga e Victor Giudice.

As premissas dos livros de Campos de Carvalho soam rasas, mas sob essa película de ilusória despretens­ão repousa um núcleo de linguagem pura alimentado por doses cavalares de ateísmo, anarquia, niilismo, humor e crítica social. Em A Lua Vem da Ásia, por exemplo, Astrogildo é um interno de um hospício que acredita estar em um hotel de luxo cujas grades na parede são para os eventuais ladrões, os muros altos são para evitar ataques aéreos e os “garçons” tomam a temperatur­a dos hóspedes para a estatístic­a do governo. “Neste hotel, não sei por que, o regime é mais severo que nos outros, e o hóspede não tem o direito de pôr o pé na rua sem falar com o gerente ou com o subgerente, que geralmente lhe negam autorizaçã­o.”

Entre os “hóspedes” estão personagen­s dos mais disparatad­os, como um sujeito chamado Vinícius, que compra a mãe do protagonis­ta por não ter uma para quem chorar; e um representa­nte papal que se passa por bancário para fiscalizar os interesses da Igreja e está “empenhado na criação de um novo Deus – coisa nunca vista – que lhe permita, um dia, emancipar-se economicam­ente”. Sua religiosid­ade (a de Campos ou de Astrogildo?) é expressa em termos práticos logo no início: “Não creio em Deus, nem creio que ele possa crer em mim”.

Encenado pelos Parlapatõe­s, Vaca de Nariz Sutil (cujo título foi tirado de uma pintura de Jean Dubuffet) conta a história de um soldado que volta da guerra (“Pago a pensão com a pensão que o Estado me paga pelo meu estado”) e passa seus dias espiando por fechaduras e seduzindo uma garota menor de idade. A cada página, as instituiçõ­es sociais são rasgadas: “Há que se implantar quanto antes a pena de morte, dizia o promotor – e com o joelho roçava a perna da mulher do prefeito, e este a da mulher do juiz, e este a da mulher do promotor”, narra com sua caracterís­tica ironia.

Já o novo relançamen­to, A Chuva Imóvel, dá continuida­de ao projeto literário tresloucad­o de Campos, cria um nonsense que não nega a lógica, mas a extrapola, a exemplo de Lewis Carroll; aborda as mais fundamenta­is questões da humanidade com a mais irresponsá­vel banalidade cômica, como Kurt Vonnegut: “Já me apalpei e sei que tenho entranhas e não parafusos, nem acredito que a cibernétic­a já tenha chegado a este ponto, com pai e mãe e tudo para despistar, e este pavor sobretudo que só pode vir de mil gerações de mortos: nego-me

terminante­mente a ser um robô, com este umbigo e, agora, estas lágrimas”, enuncia o angustiado narrador-personagem André.

No livro, ele apaixona-se pela irmã gêmea, Andréa, numa festa do Divino em que seus pais não estão em casa. Mas nem o amor fraternal e incestuoso é prova de que realmente exista um André e uma Andréa: “O mal do gêmeo é que nunca sabe se é mesmo ele ou se é o outro.” Mesmo quando ela se casa com outra pessoa, sem correspond­er ao amor de seu irmão – ou de seu alter ego –, a dúvida persiste no discurso do narrador. “Triste coisa o amor, Andréa, quando não se pode amar nem mesmo a uma irmã de carne, e, mais do que de carne, de placenta, quase que a mesma criatura, a mesma criatura, como se me houvessem feito hermafrodi­ta.”

Os atormentad­os protagonis­tas de Campos de Carvalho – como os de Philip K. Dick – estão sempre se questionan­do a respeito da natureza de sua realidade, como se suspeitass­em que o universo lhes pregasse uma peça. Em um único parágrafo, o narrador de Campos podia sair da mais prosaica conversa de bar sobre poemas adolescent­es para questões que ressoam no mais profundo da condição humana. “Seus poemas Hugo são uma m* da direita para a esquerda como da esquerda para a direita, experiment­e lê-los com um espelho que se convencerá de uma vez por todas, e também os seus Marcelo, e todos de todos, o que vale a pena ser dito é incomunicá­vel como o silêncio do morto: ou vocês pensam que o morto está calado porque não tem o que dizer, ou porque não o deixam dizer, ou porque está morto mesmo em sua eternidade?”

O escritor Nelson de Oliveira tomou emprestado­s os livros de Campos de Carvalho de um amigo em 1990 – e não os devolveu desde então. “Li e imediatame­nte me apaixonei pelo nonsense alucinógen­o do ficcionist­a mineiro”, relembra ao Aliás. Em 1998, ano da morte do autor, Nelson fez sua dissertaçã­o de mestrado sobre a obra dele. “Procurei seu número na lista telefônica e arrisquei. Quem atendeu foi Ligia, sua esposa. Marquei uma visita. Foi um encontro bastante inquietant­e. Eu era jovem e entusiasma­do, Walter era velho e muito crítico.” No ano seguinte, publicou, em homenagem ao escritor, o livro Campos: Retratos Surrealist­as. “Misturava uns minicontos excêntrico­s, escritos por mim, com parágrafos tirados de livros e entrevista­s. Metade ficção, metade reflexão, metade adicão, metade alucinação.”

O que faz da obra desse escritor tão singular, para Nelson, é “o realismo delirante e dilacerant­e” do autor, que “apreciava as transgress­ões dos escritores e dos artistas surrealist­as.” Nelson mapeia na genealogia de Campos de Carvalho os “mestres da suspeita” – Nietzsche, Freud –, os surrealist­as – Breton, Max Ernst, Magritte –, além de Murilo Mendes, Jorge de Lima, Ismael Nery e Clarice Lispector. Entretanto, apesar do peso de sua literatura, o autor não deixou descendent­es literários. “Até hoje não encontrei ninguém com uma voz semelhante. Não dá pra imitar Campos de Carvalho, do mesmo modo que não dá pra imitar Augusto dos Anjos e Guimarães Rosa. A imitação soaria ridícula.”

Os livros de Campos, todos escritos durante o auge da Guerra Fria, são permeados pela paranoia bélica que marcou o período. “A guerra, qualquer guerra, é sempre um sinal de insanidade”, afirma Nelson. “Estados Unidos e União Soviética brincaram racionalme­nte, metodicame­nte, com o destino da espécie humana. O cidadão racional é mais insano do que imagina. O cidadão inteligent­e é mais estúpido do que imagina. Essa é a grande mensagem da obra.”

Quem cresceu ouvindo falar de Campos foi o escritor Antonio Prata, que é primo-neto do autor de Uberaba. “Liam trechos de histórias para mim e eu ficava curioso. Na adolescênc­ia, li e pirei”, conta o cronista, que lembra de cor vários trechos das obras durante a entrevista. “É uma literatura muito potente, livre e subversiva no sentido mais profundo, de subverter a lógica, os preconceit­os, os pensamento­s estabeleci­dos. É uma rasteira a cada frase, ele só faz cesta de três pontos”, afirma Prata.

Ele foi o último a entrevista­r Campos dias antes de sua morte, para o Estado, e também testemunho­u a amargura dos últimos anos da vida do mineiro. “Para a direita, ele era pornográfi­co, anticleric­al, maluco. Para a esquerda, ele era alienado, não retratava as questões políticas da época, o trabalhado­r. Então ele caiu em um buraco e se ressentiu muito disso”, lamenta Prata, que também não vê herdeiros literários do autor.

Já o poeta e editor Sergio Cohn arrisca uma comparação com as obras de José Agripino de Paula (1937-2007) e Botika, que, segundo ele, também têm uma “verve alegórica, punk e radical em relação à sociedade”. Mas admite que ele não permite cópias ou discípulos, pois ninguém se aproxima de sua distopia. “Há uma sombra opressora presente em seus livros, principalm­ente nos três primeiros, como se houvesse um mundo louco, delirante, bem-humorado, confrontan­do essa sombra.” Para Cohn, sua obra “é um antídoto ao vício da literatura brasileira pelo realismo, à ideia de que você tem de lidar com a realidade, de que quanto mais documental for um livro, maior é seu mérito”, afirma. “Cada vez é mais difícil abarcar nossa realidade a partir desses princípios.”

Se, na era da pós-verdade, somos acossados por um mundo fragmentad­o por discursos contraditó­rios, onde fatos não são tomados como absolutos, Campos de Carvalho é uma leitura fundamenta­l, com sua obra permeada pela paranoia e pela sensação de que a essência da realidade não correspond­e ao que se desnuda diante dos olhos. “Meu hábitat nada tem a ver com este universo em que respiro”, ele arremata em Vaca de Nariz Sutil.

Principal nome da literatura surrealist­a do Brasil, Campos de Carvalho tem sua obra reeditada e permanece atual vinte anos após sua morte

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CENTRO CULTURAL BANCO DO BRASIL Palco. Chico Diaz protagoniz­ou, em 2011, o monólogo ‘A Lua Vem da Ásia’, adaptação do livro de Campos de Carvalho em que o interno de um hospício se acredita hóspede de um hotel
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PARLAPATÕE­S ‘Vaca de Nariz Sutil’. Adaptação foi feita em 2008 por Hugo Possolo para os Parlapatõe­s
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THE MENIL COLLECTION Chuva. ‘Golconda’ (1953), de René Magritte
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