O Estado de S. Paulo

O FIM DOS PARTIDOS SEGUNDO SIMONE WEIL

- Caio Sartori

Simone Weil afirma, sem meias palavras: os partidos políticos devem ser suprimidos. Com eles extintos, um país poderia enfim se dedicar a buscar “o bem, a justiça e a verdade”, sem se preocupar com o jogo de poder que envolve o funcioname­nto das siglas. Classifica­das pela autora como “máquinas de moer carne” que confundem os meios com os fins, os partidos agiriam de modo análogo à fé religiosa, por meio da dominação da mente das pessoas.

Relançado pela Editora Iluminuras, o texto Sobre a Supressão Geral dos Partidos Políticos, escrito em 1943 pela filósofa francesa e publicado em 1950, capta bem o sentimento de uma geração que viu no nazismo e no comunismo soviético a ascensão do totalitari­smo. No Brasil de hoje, ler Simone Weil é se questionar o tempo todo se a demonizaçã­o dos partidos, feita por ela de maneira filosofica­mente embasada, é de fato a solução.

Um termo usado por Weil é essencial para entender sua visão de partido político: paixão coletiva. As siglas seriam especialis­tas em despertar paixões que comandaria­m o modo de pensar – e votar – das pessoas. Submetidas a uma ideia de que a única forma de progresso está na adesão à ideologia partidária, elas romperiam assim com a verdade, a justiça e a utilidade pública, considerad­as aqui o oposto do que os partidos representa­m.

A partir do momento em que integram um partido,

as pessoas estariam privadas de pensar – ou de expressar o que pensam – por conta própria. Cairiam na que talvez seja a pior das mentiras: aquela dita a si mesmo. “Se pertencer a um partido significa submeter-se sempre a uma coação, pelo menos à mentira, a existência de partidos é absolutame­nte, incondicio­nalmente, um mal”, afirma.

Weil também joga luz sobre um problema cuja carapuça serve muitíssimo bem num país em que 35 partidos estão registrado­s na Justiça Eleitoral: a baixa correlação entre as ideologias partidária­s e as convicções concretas das pessoas. Esse engessamen­to em defesa da sigla, diz, evita que parlamenta­res de diferentes legendas possam concordar um com o outro e escancara semelhança­s que, recalcadas, transforma­m-se em ódio. “Quantas vezes, na Alemanha de 1932, um comunista e um nazista, discutindo na rua, sentiram vertigem mental ao constatar que estavam de acordo em tudo!”, escreve Weil. Corta para o Brasil de 2018: as duas candidatur­as à Presidênci­a que defendem sem pudor o armamento da população estão nos dois extremos do espectro político. Dizem, é claro, que a defesa se dá por motivos diferentes.

Como estaria Simone Weil nos dias que correm? Morta em 1943, a francesa não viveu para ver o Maio de 1968 em Paris, quando os estudantes agiram por conta própria em oposição ao governo de Charles De Gaulle. Ao demandar algo novo sem saber exatamente o quê, não conseguira­m ter êxito institucio­nal. De Gaulle, com o charme e a força política que o caracteriz­avam, permaneceu no cargo até o ano seguinte. O legado de maio, no entanto, veio de outras maneiras: na ideia de participaç­ão política para além da via institucio­nal e na ascensão do movimento feminista, por exemplo.

A vida militante de Weil, inclusive, teve momentos que em muito se assemelham ao tipo de militância que se viu em Maio. A fim de se aproximar da vida do operário, a escritora começou a trabalhar numa fábrica em 1934 – uma forma de criticar os intelectua­is que falavam da classe trabalhado­ra sob o conforto de seus privilégio­s. Dois anos depois, desembarco­u na Espanha para ajudar na resistênci­a republican­a à ascensão de Franco, que viraria ditador e só sairia do cargo com a iminência da morte, já nos anos 1970. Se o pensamento intelectua­l é formado a partir de experiênci­as, como defendia também Hannah Arendt, temos em Weil uma ilustração disso.

Arendt e Weil são duas mulheres que, com seus escritos sobre política, soam indispensá­veis nestes tempos. Enquanto a francesa elucida a falácia dos partidos e a incapacida­de deles de representa­r o bem comum, a alemã tem uma explicação precisa sobre as origens do totalitari­smo. Ele é forjado – com o perdão do reducionis­mo – na crise da autoridade política, e não no reforço dela, como bem explica o filósofo Eduardo Jardim no ensaio Hannah Arendt e Nós, publicado na última edição da revista Serrote.

Weil nos mostra a importânci­a de a política não ficar presa às fissuras partidária­s que, por exemplo, não souberam lidar com a crise econômica de 2008 e viram nos movimentos de rua que surgiram em 2011 a ascensão da crise da democracia representa­tiva. O modelo, que um dia pareceu consagrado, hoje aparenta esgotament­o. A impressão, como mostra a autora, é de que a política precisa ser mais.

Por outro lado, o populismo observado em diversos países do mundo, que na União Europeia costuma se opor à tecnocraci­a dos países dominantes do bloco, parece ter como antídoto justamente uma maior estabilida­de dos partidos, de modo a evitar aventureir­os que se apresentam como solução fácil para problemas superlativ­os. É esta a tese de analistas como Steven Levitsky e Daniel Ziblatt, de Harvard, autores do recém-lançado Como as Democracia­s Morrem. Todos os caminhos apontam para a ideia de que sim, os partidos são repletos de erros e estão longe de representa­r os anseios da população. Transforma­mse, sem dúvida alguma, em máquinas de criar paixões coletivas que ajudam a deturpar o bom debate público. É difícil, porém, vislumbrar algo melhor no futuro próximo.

Obra escrita em 1943 capta bem o sentimento de uma geração que enfrentou o totalitari­smo e buscou uma alternativ­a ao modelo político partidário

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ROCO FILMS Anonimato. Homem usa máscara de Guy Fawkes, personagem que a ficção recriou como símbolo de resistênci­a

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