O Estado de S. Paulo

NOVA VERSÃO DE JOYCE

- Paulo Nogueira ✽

Há tempos, o site literário The Millions realizou uma pesquisa de dois anos para estabelece­r quais os livros mais difíceis editados em língua inglesa – seja pela extensão ou estilo ou extravagân­cia estrutural, ou pela abstração conceitual tipo rebimboca da parafuseta. A conclusão proclama que quem conseguir ler os dez finalistas (entre eles, o rarefeito A Fenomenolo­gia do Espírito, de Hegel, e o nebuloso Ser e Tempo, de Heidegger), pode se considerar um upgrade do Homo Sapiens. Em primeiro lugar, não deu outra: Ulisses na cabeça – provavelme­nte com vários parágrafos de lambuja.

James Joyce é barbada para maior escritor do século 20 (OK, decisão no photo-finish com Marcel Proust). Mas nem toda obra dele é pedreira. Chamber Music é uma coleção de poemas de um lirismo antiquado; Exilados, uma peça de teatro no modelito Ibsen; e Dublinense­s (que ele cogitou de intitular Ulisses em Dublin), um volume de contos em parte convencion­al – mas também a primeira obra-prima do autor. E é esta última obra que acaba de sair em nova tradução brasileira, de Caetano Galindo, cuja versão de Ulisses passou o rodo em todos os prêmios do setor.

Joyce escreveu o primeiro conto de Dublinense­s (As Irmãs) em 1904, para descolar uma libra esterlina, a pedido de um amigo, que o publicou no jornal Irish Homestead. Com exceção do último conto (Os Mortos), o volume foi concluído em Trieste, em 1905, onde o escritor se virava dando aulas de inglês na Escola Berlitz, para manter a mulher Nora e o filho recém-nascido, Giorgio. Ainda na casa dos 20 anos, Joyce demonstra uma estarreced­ora maturidade: literariam­ente, este marinheiro de primeira viagem já era um velho lobo do mar.

A cidade de Dublin era a protagonis­ta da obra – como disse um crítico, “menos um lugar sobre o qual Joyce escreve, do que um lugar que é sobre a escrita de Joyce”. A Dublin dos contos é um rincão claustrofó­bico, de gente frustrada que vive vidas provincian­as. Mas é também muito mais: a cidade que Joyce amava odiar e odiava amar. Nunca escreveu uma vírgula que não fosse sobre Dublin, pois para ele não existia outra coisa: a capital da Irlanda (que deixou aos 22 anos para não mais regressar, a não ser em duas visitas de médico) era para Joyce algo como o Aleph borgiano: o ponto que abarca toda a realidade do universo num local preciso.

Numa carta, Joyce se espanta que “uma cidade que havia sido capital durante mil anos, que é a segunda maior do Império Britânico e três vezes maior que Veneza não tenha sido revelada ao mundo por nenhum artista.” Desfilam por Dublinense­s mais de 30 personagen­s que veremos de novo em Ulisses. O livro lida com Dublin como um organismo (ainda que moribundo), e por isso as histórias seguem uma evolução: Infância, Adolescênc­ia, Maturidade e Vida Pública.

Talvez o principal recurso literário em Dublinense­s seja a epifania, termo religioso que significa “revelação” e que Joyce, ex-aluno de colégio jesuíta, secularizo­u. Através dela (com a qual Clarice Lispector também deitou e rolou), o autor descreve o momento em que um lampejo de reconhecim­ento, em geral uma penosa autoconsci­ência, faz cair a ficha ontológica do personagem, amplifican­do a perspectiv­a limitada do cotidiano. Assim, o protagonis­ta encontra a última

peça do quebra-cabeças, e consegue ver a imagem da sua própria vida. É precisamen­te o que acontece, por exemplo, em Eveline, Arábia e Uma Pequena Nuvem.

Em Os Mortos (o único conto para o qual um certo professor Vladimir Nabokov deu A+ em suas aulas), é a contemplaç­ão da neve que opera como epifania. Ao saber que sua esposa foi apaixonada por outro homem antes de o conhecer, o protagonis­ta Gabriel percebe que não apenas Gretta amou aquele jovem muito mais do que ao próprio marido, como ele mesmo nunca amou ninguém assim, nem a própria mulher. E compreende que os mortos podem estar mais vivos do que os vivos.

Daí o enganador realismo de Dublinense­s, que, combinado com um sutil simbolismo, nunca descamba no naturalism­o unidimensi­onal. Embora o próprio Joyce tenha descrito seu estilo nos contos como de “escrupulos­a mesquinhar­ia”, o buraco é mais em cima. Em seus desfechos reticentes e ambíguos, ele obtém um prodígio inédito: a sublimação estética da vida comezinha da pequena burguesia. Ninguém é condenado, e ninguém é absolvido. Os ambientes só existem na consciênci­a e na retórica – no entanto, essa existência é a única verdadeira.

Joyce morreu em Zurique, no dia 13 (como ele, superstici­oso, temia) de 1941, de úlcera – na verdade, depois de 40 anos de biritas torrenciai­s. Acredite quem quiser, mas as últimas palavras dele foram: “Does nobody understand?” (Ninguém entende?). Nora, na maior pindaíba, tentou repatriar o corpo para a Irlanda, cujo governo, para seu eterno vexame, recusou. Depois do enterro, ao vê-la soluçar, o taxista consolou-a com um tato que deixou algo a desejar: “Mas, minha senhora, tenho a certeza de que haverá outros homens!” Nora morreu em 1951 e foi sepultada no mesmo cemitério Fluntern, junto ao marido, num jazigo doado pela prefeitura de Zurique. Na sepultura ao lado, repousa o nobelizado escritor austríaco Elias Canetti. Foi o mais perto que James Joyce chegou do prêmio Nobel.

Nova tradução de ‘Dublinense­s’ de Caetano W. Galindo, um dos tradutores de ‘Ulisses’, chega às livrarias, antecipand­o a de ‘Finnegans Wake’

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WIKIMEDIA COMMONS Dublin. James Joyce tinha uma relação de amor e ódio pela cidade, protagonis­ta de seus livros, aqui vista no começo do século passado
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Joyce. Longe de Dublin, que odiou e amou
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Harriet. A editora amiga bancou o autor

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