O Estado de S. Paulo

O CINEMA DE SÍSIFO

A dramaturga e escritora Sílvia Marques analisa o fenômeno e o tabu do suicídio por meio dos exemplos de sua representa­ção na arte, filosofia e psicologia

- ✽ É MESTRE E DOUTOR EM ESTÉTICA E HISTÓRIA DA ARTE PELA USP. CRÍTICO E ENSAÍSTA, PUBLICOU, ENTRE OUTROS, ‘CINEMATOGR­APHOS DE GUILHERME DE ALMEIDA’ (ED. UNESP, 2016) Donny Correia ✽

Um tabu impronunci­ável para algumas culturas, uma forma digna de recuperar a honra perdida, para outras. Pode ser, até mesmo, um ato extremo movido por narcisismo e vingança. Todas essas facetas do suicídio cabem e são discutidas no livro Apagando as Luzes do Palco: Reflexões Sobre o Suicídio na Pós-Modernidad­e, da psicanalis­ta, escritora e dramaturga Sílvia Marques.

Se o suicídio tivesse uma forma visual e palpável, capaz de ser moldada pelo suplício de um paciente obcecado por dar cabo de si próprio, qual seria ela? A visão turva de uma cessação voluntária resguarda um histórico cristalino. O livro de Sílvia Marques propõe uma reflexão sobre o tema a partir da arte. Detidament­e, o cinema.

Dividida em três partes, a concisa obra pretende não só oferecer uma abordagem desmistifi­cadora do suicídio, mas tratar o tema pelo viés das possíveis representa­ções estéticas e investigaç­ões médicas ou filosófica­s. Como a autora observa, já nas primeiras páginas, o suicídio é tema de diversas obras na literatura, na pintura, no cinema etc.

Na primeira parte, voltada à exposição abrangente do que já foi dito e escrito sobre o suicídio, podemos enxergá-lo como algo inerente à falibilida­de de nosso dom da consciênci­a do mundo. É como se sentíssemo­s o peso que Sísifo sentia não só da pedra, mas da vã tentativa de escalar a montanha. Ou, alternativ­amente, podemos pensar sobre a consciênci­a que transcende a necessidad­e ou a vontade de determinad­as realizaçõe­s a que a maioria de nós se propõe, ao longo de uma vida.

Por falar no mito de Sísifo, partimos da asserção de Camus, que Sílvia usa no início da obra para tecer o panorama teórico a que seremos apresentad­os. Diz o escritor que “julgar se a vida vale ou não a pena ser vivida é responder à pergunta fundamenta­l da filosofia”. Se assim for, o mergulho proposto pela autora nos coloca frente a uma questão capciosa e, aparenteme­nte, sem resposta. Por um lado, abominamos a ideia do suicídio. Por outro, há casos em que o fardo do mundo parece facilmente superar qualquer otimismo.

Para Freud, nas palavras de Sílvia, “o suicídio é visto como uma introjeção do objeto do desejo”. Portanto, a ideia nasce de nossa própria e íntima relação com o objeto almejado, com uma perda, frustração ou revolta, já que o suicídio é, na realidade um ato contra algo ou o outro, objetivame­nte. De forma mais aprofundad­a, também somos introduzid­os às ideias de Sartre. Ele acreditava que acabar com a própria vida era um ato extremo de liberdade que cercearia a possibilid­ade de todos os outros atos de liberdade. Para Cioran (o mais lúcido entre os lúcidos), embora desprovida de qualquer sentido, assim como a vida, a morte ainda é capaz de encerrar as mazelas do imponderáv­el. Sendo a vida um acúmulo de nulidades, só restaria a exatidão irrefutáve­l da morte como conforto.

Passeando por exemplos que vão da Medeia, de Eurípedes, a personagen­s da teledramat­urgia nacional, como Zé das Medalhas, de Roque Santeiro, ou Laurinha Figueroa, de Rainha da Sucata, Silva Marques apresenta e explica de maneira didática e precisa as categorias de patologias psíquicas que culminam com a ação suicida, dando ênfase em cada perfil psicológic­o envolvido nas diversas motivações para o ato.

Na segunda parte, o livro cataloga uma série de produções cinematogr­áficas de várias épocas e gêneros, agrupadas por tipos de comportame­ntos observávei­s por trás do suicídio de determinad­o personagem, o que traduz na arte aquilo que a ciência reconhece em seu escopo metodológi­co.

Alguns dos filmes nos apresentam protagonis­tas ou antagonist­as do tipo que comete suicídio por óbvio transtorno psicológic­o, como em Cisne Negro e O Inquilino, de Polanski. Outros definem o suicídio cometido por protesto, escapismo, como em Sociedade dos Poetas Mortos, Thelma & Louise ou Um Dia de Fúria. Mas, o destaque desse capítulo reaviva uma discussão que inflamou a estreia da primeira temporada de 13 Reasons Why, em 2017, dada a polêmica que o mote principal da trama gerou. Na série, o espectador é confrontad­o com o suicídio de Hannah Baker, jovem adolescent­e que deixa treze fitas cassetes cujo conteúdo pode elucidar uma série de problemas pessoais da garota, bem como denunciar abusos e negligênci­as por parte de outros personagen­s.

Para a autora de Apagando as Luzes do Palco, sob o prisma psicanalít­ico, não há muito mistério ou complexida­de no comportame­nto de Hannah. Na realidade, o cenário geral denuncia uma jovem com problemas de relacionam­ento com o mundo tal qual este se configura. Alguém que escolheu não superar o óbvio cotidiano, já que não conta com muita atenção por parte de seus ocupados pais, e tem de lidar com o bullying no colégio. Por outro lado, Hannah não mostra disposição para estabelece­r laços de afeto com os poucos que se importam com ela. Portando, seu suicídio, embora lamentável, denuncia um ato narcisista e punitivo, ao mesmo tempo. Quer dizer, sem que se dê conta, Hannah catalisa as incongruên­cias de seu universo e atenta contra si mesma com vistas a respingar culpa nos que continuarã­o suas vidas.

Embora a segunda temporada não tenha alcançado o mesmo êxito, ou suscitado tanta discussão, sem dúvida o tema continuará na agenda dos debates que as obras de arte são capazes de fomentar.

Para fechar o volume, Sílvia Marques apresenta uma dedicada pesquisa estatístic­a organizada a partir de consultas a profission­ais da saúde e enquetes públicas, traçando, assim, parâmetros e perfis em torno do tema. Ao fim, a obra consegue diminuir a soturna distância entre o tabu do suicídio e o senso comum.

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CINEMAX Polanski. ‘O Inquilino’ é exemplo de suicídio por transtorno psicológic­o
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