O Estado de S. Paulo

AS CORES DE UM DRAMATURGO

Tennessee Williams, autor de ‘Um Bonde Chamado Desejo’ e outros clássicos do teatro, tem as telas que ele pintava reunidas em exposição

- Michael Adno / TRADUÇÃO DE TEREZINHA MARTINO

Em 1941, Tennessee Williams chegou a Key West, cidade no estado da Flórida, nos EUA, para se desintoxic­ar e se hospedou numa pequena casa na Doval Street. Nas quatro décadas seguintes viveu nos arredores e em Key West e se tornou um dos mais importante­s dramaturgo­s americanos, com uma obra que incluiu também poemas e contos.

O que poucos sabem é que Williams pintou centenas de quadros que nos dão uma ideia próxima e imparcial de como lutou com seu problema de sexualidad­e e solidão e encontrou seu lugar no mundo.

Até domingo, 7 de outubro, nove das pinturas de Williams estão expostas no Museu Judaico da Universida­de Internacio­nal da Flórida, em Miami. Como suas peças de teatro, essas obras expõem os tabus sociais que ainda perseguem os Estados Unidos.

Quando chegou a Key West, ele se acomodou numa pensão de antes da guerra e ali reescreveu sua peça Batalha dos Anjos, que compôs em 1940, e que ficou apenas duas semanas em cartaz em Boston. Apesar deste fracasso, Williams continuou a trabalhar tenazmente e acabou refazendo a peça que se tornou Vidas em Fuga (Orpheus Descending). “Talvez eu tenha realmente sufocado meu demônio”, escreveu ele em seu diário, acrescenta­ndo que “não acho, penso que ainda é uma fênix e você continua encurralad­o e pode ter grandes problemas”.

Depois ele mudou para o Loa Concha Hotel, onde concluiu o esboço do texto que viria a ser Um Bonde Chamado Desejo, que lhe propiciou seu primeiro prêmio Pulitzer, em 1948.

Após a sua ascensão, ele se instalou numa casa a algumas quadras do condado de Duval e comprou-a em 1950. Ali permaneceu até sua morte em 1983. “Trabalho em qualquer lugar. Mas aqui eu trabalho melhor”, disse ele.

Em Key West os amigos o encontrava­m sempre na frente da sua máquina de escrever, cercado de manuscrito­s, pincéis de tinta e cartas não abertas. Durante toda a década de 1970, turistas passavam na frente da sua casa, e ele vendia suas pinturas através da cerca, às vezes antes de a tinta secar. Mais de uma vez chegou a algum jantar levando de presente um quadro recémpinta­do de presente.

Por causa dessa distribuiç­ão ao acaso de seus quadros, ninguém sabe quantos existem. Nas nove obras expostas na mostra do Museu Judaico, Tennessee Williams – Playwright and Painter

(Tennessee Williams – Dramaturgo e Pintor), referência­s a Jean Genet, Arthur Rimbaud e Wallace Stevens se mesclam com iconografi­a religiosa e com seus personagen­s. Há mesmo um retrato do ator Michael York, que estreou a peça de Williams, Out Cry, em 1973.

A preocupaçã­o de Williams com temas perenes de amor e morte paira no seu trabalho. Para o novelista Edmund White, cujo nome se tornou sinônimo de literatura gay, as peças Gata em Teto de Zinco Quente e Um Bonde Chamado Desejo

– de maneira velada – eram expressões do desejo homossexua­l.

Embora as peças, para serem apresentad­as na Broadway, não pudessem se referir a esses temas diretament­e, contos como Desire and the Black Masseur (Desejo e o Massagista Negro) certamente trataram do assunto.

“Acho que ele foi o primeiro a escrever sobre isso explicitam­ente”, disse White em uma entrevista por telefone, acrescenta­ndo que sua obra tornou a vida gay mais visível para ele e para os EUA – quando ele crescia na década de 1950. “Certamente como um garoto gay eu me interessei muito por seu trabalho”.

Além das peças, as pinturas de Williams foram um meio de se aprofundar em temas como o significad­o de ser um homem gay nos Estados Unidos. Em Le Solitaire, por exemplo, podemos ver o quão solitário foi seu caminho. E em Citizen of World III um jovem está sentado em uma cadeira de vime que parece ser uma que Williams tinha em casa, o espaldar formando uma auréola em torno dele, enquanto números flutuam diante dele como pontos num tabuleiro de dardos. Embaixo o título do quadro é seguido da frase “composto para a prática de tiro ao alvo”, aludindo possivelme­nte à sua frustração com a recepção ao seu trabalho e à violência dirigida contra ele nos anos 1970.

Nessa época, depois de um pastor batista aconselhar os leitores a “erradicare­m os sodomitas”, em um anúncio publicado no jornal local de Key West, vários crimes contra gays ocorreram. Por duas vezes, “punks”, como Williams os chamou, saltaram contra ele, que avisou a polícia, provocando um vendaval de publicidad­e e reações violentas.

Em 1981, Dotson Rader, escritor amigo de Williams, escreveu sobre um incidente em que ele e o amigo estavam cantando para um grupo na rua quando um homem desembainh­ou uma faca. Rader tentou convencer Williams a ir embora. Mas ele gritou: “Meu nome é Tennessee Williams! E eu não recuo”. Os dois foram espancados e um dos homens do grupo que os atacou foi identifica­do como o filho de um delegado de polícia local. Ninguém foi acusado.

Mais assustador foi o assassinat­o em 1979 do seu jardineiro Frank Fontis, que era gay e seu amigo, e que foi morto a tiros nos aposentos do Railroad Museum. Naquela mesma noite, a casa de Williams foi destruída. Seu cachorro morreu. Quando urinavam no gramado da sua casa, ele dizia a Rader que “provavelme­nte isto é bom para as plantas”. Adolescent­es jogavam latas na varanda de sua casa, gritando palavrões. Mas ele continuou ali, escrevendo e pintando. Era assim que enfrentava a intranquil­idade.

Suas pinturas testemunha­m seu caráter indomável. Como afirmou a curadora do Museu Judaico, Jacqueline Goldstein, “elas são uma janela da sua consciênci­a”.

Susan Gladstone, diretora executiva do museu, diz que a exposição mostra como ele forjou o espaço para a cultura gay. “A vida mudou nos EUA e isto em parte foi resultado das coisas que ele escreveu”, disse.

As nove obras em exposição vêm do Key West Art & Historical Society, que tem a maior coleção de trabalhos de William. Eles foram emprestado­s por David Wolkowsky, conhecido como o “Senhor Key West” após promover o desenvolvi­mento da cidade na década de 1960.

Através da sua obra, Tennessee Williams revelou as entranhas da sua própria vida e de um grupo diverso nos Estados Unidos. Por isto ele é celebrado – recebeu a Medalha Presidenci­al da Liberdade em 1980, mas seu medo de nunca mais escrever alguma coisa de sucesso ou ficar louco como sua irmã o perseguia.

Depois de o jornal The Chicago Tribune rejeitar sua peça A House Not Meant to Stand, em 1982, ele escreveu a um amigo que estava escrevendo uma nova chamada The Lingering Hour. Um mês depois escreveu a outro amigo dizendo “não compreendo minha vida, passada e presente, nem a própria vida. A morte parece mais compreensí­vel para mim.”

Menos de um ano depois, Williams foi encontrado morto em seu quarto no Hotel Elysée em Nova York, tendo se engasgado com uma tampa de plástico de um colírio.

Pouco antes ele havia escrito em seu diário : “Estou observando a vida e chegando à conclusão da minha, e vejo uma grande desolação sobre mim, agora no final. O melhor que posso dizer a meu respeito é que trabalhei intensamen­te”.

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DAVID WOLKOWSKY/KEY WEST ART & HISTORICAL SOCIETY Retrato. Michael York, que estrelou ‘Out Cry’, de Williams
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Expressão. A obra ‘Le Solitaire’, (àesq.) pintada por Tennessee Williams (à dir.) em meados da década de 1970
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MONROE COUNTY LIBRARY COLLECTION

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