O Estado de S. Paulo

O PÊNDULO DO DESEJO NA FICÇÃO DE ALBERTO MUSSA

- Martim Vasques da Cunha

Com A Biblioteca Elementar, Alberto Mussa finalmente nos entrega o último tomo do seu grande ciclo de romances históricos, carinhosam­ente intitulado de Compêndio Mítico do Rio de Janeiro. São cinco livros – O Trono da Rainha Jinga (1999), O Senhor do Lado Esquerdo (2011), A Primeira História do Mundo (2014) e A Hipótese Humana (2017). Conforme afirma o próprio autor, cada um deles lida, respectiva­mente, com os seguintes temas inquietant­es: “A ideia de Bem como função do Mal; a natureza da sexualidad­e masculina; a natureza da sexualidad­e feminina, ao menos na visão que têm os homens dela; e a noção da alma em contrapont­o à de pessoa.”

Em A Biblioteca Elementar, temos uma meditação lúdica sobre “a necessidad­e de se pressupor uma causa primitiva, ou um agente elementar, desse mesmo Mal”. Para isso, Mussa usa e abusa dos dois gêneros literários que faziam a alegria do escritor argentino Jorge Luis Borges: o romance policial e o enigma árabe. No decorrer da sua obra anterior, o romancista brasileiro misturava-os com tamanha habilidade narrativa que acabávamos por nos esquecer que ele também fazia parte de uma tradição tipicament­e nacional – a do romance carioca, cuja linhagem reúne escritores como Manuel Antônio de Almeida, de Memórias de

Um Sargento de Milícias (1854), o José de Alencar de Senhora (1875) e o Joaquim Manuel de Macedo de A Misteriosa (1873).

Não à toa, Mussa insere um trecho desse último livro como uma das epígrafes de abertura de A Biblioteca Elementar – “Dez Realidades não Valem Uma Imaginação”. Para ele, a narrativa ficcional e a narrativa histórica caminham juntas – como fica nítido no terceiro romance do ciclo, A Primeira

História do Mundo, e em outros livros seus, como O Enigma de Qaf (2004) –, desde que um leitor cuidadoso perceba que há uma conexão entre as duas. No caso, essa ponte é nada mais, nada menos, que o desejo mimético.

O termo acima é do pensador francês René Girard e consiste na seguinte formulação: descobrimo­s que não desejamos alguma coisa ou alguém por nós mesmos, e sim porque imitamos os desejos dos outros – ou seja, quem admiramos, invejamos, nos apaixonamo­s, etc. Enfim, há sempre uma terceira pessoa que acreditamo­s ser, sem o sabermos, o nosso “modelo” – e o desconheci­mento disto nos leva a um aumento crescente de uma violência que começa na vida privada, mas logo se expande para a vida social. Sem citar consciente­mente a obra de Girard, Mussa teve a mesma intuição ao criar um jogo de permutaçõe­s – já antevisto em O Movimento Pendular (2006) e desenvolvi­do depois, de forma dramática, neste A Biblioteca Elementar –, ao comentar que, na verdade, “o conceito de sociedade, surgido na alta pré-história, deriva diretament­e do desenvolvi­mento da noção de adultério [o exemplo máximo de desejo mimético] – e não do incesto, como se acostuma apregoar”.

Esse vislumbre perturbado­r do comportame­nto humano retorna com força total neste derradeiro volume do Compêndio Mítico. Mussa brinca com vários triângulos amorosos, numa espécie de releitura do Teorema

da Incompletu­de de Kurt Gödel que, no fim, dá toques alucinante­s a uma trama policial que envolve os habitantes de 19 casas na então Rua do Egito, em um ambiente histórico contextual­izado em 1733 – muito antes do “tempo do Rei”. Há um assassinat­o, claro, mas não do modo como o leitor pensa; há criminosos também, apesar de sequer saberem que praticaram algum crime. Contudo, há um enigma e, por mais paradoxal que isso pareça, há também uma certeza: a de que, independen­temente do seu alvo, o desejo mimético ataca a todos nós – e o que nos resta são as linhas do destino gravadas na palma da nossa mão, essa “biblioteca elementar” que lê a vida de cada um.

Assim, o verdadeiro segredo a ser revelado pelo romance de Mussa talvez seja a interrogaç­ão sobre se “a causa primitiva do Mal” é ou não é o descontrol­e das nossas paixões. E é por causa disto que a nossa sociedade ficou completame­nte dominada por um desejo mimético que move nossos mecanismos de punição e de recompensa, “menos pelos agentes da justiça que pela inveja, pela dor, pelo ressentime­nto, pelo medo, pela vingança dos próprios cidadãos, por tudo que brota da lama negra ou da madeira podre de que é feita a humanidade”. Graças a tal axioma, fica nítido que a trama de A Biblioteca Elementar se passa em 1733, mas poderia muito bem acontecer em 2018 – em um Brasil arcaico que não fica nada a dever ao de hoje, possesso pelos arcanos do poder. Afinal, a conclusão desse teorema nada incompleto é que o pêndulo do desejo sempre vai de um extremo para o outro, sem a capacidade de existir algum domínio nas nossas afeições. E será por causa de Alberto Mussa, este investigad­or da alma humana, que talvez descobrire­mos um “meio-termo” provisório para o mistério mítico que nos deixa permanente­mente perplexos. Quem viver, verá.

É AUTOR DOS LIVROS ‘CRISE E UTOPIA – O DILEMA DE THOMAS MORE’ (VIDE EDITORIAL, 2012) E ‘A POEIRA DA GLÓRIA – UMA (INESPERADA) HISTÓRIA DA LITERATURA BRASILEIRA’ (RECORD, 2015); PÓS-DOUTORANDO PELA FGV-EAESP

‘A Biblioteca Elementar’ encerra a série de romances históricos do autor situados no Rio de Janeiro e medita sobre o desejo e a causa primitiva do mal

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P. BENOIST/E. CICERI/BIBLIOTECA NACIONAL Mimese. Personagen­s da cena carioca, em 1733, replicam os desejos alheios por imitação
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FÁBIO MOTTA/ESTADÃO Mussa. Ciclo cruza fato histórico e invenção

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