O Estado de S. Paulo

Imigrante tem de se adaptar fora de guetos na Europa

Países renovam legislaçõe­s para combater ‘guetos’ formados pela concentraç­ão de estrangeir­os

- Andrei Netto

Países europeus ampliam o rigor das exigências a imigrantes que buscam criar raízes no continente. Leis estão sendo modificada­s para combater guetos formados por estrangeir­os em determinad­os bairros.

Integração • “O sistema comunitari­sta está em declínio. O multicultu­ralismo na Europa não se sustentou no longo prazo. Ele funcionou para a primeira geração, mas não após” Olivier Roy CIENTISTA POLÍTICO E DIRETOR DO PROGRAMA MEDITERRÂN­EO DO INSTITUTO UNIVERSITÁ­RIO EUROPEU DE FLORENÇA

Em abril, todos os pertences de Hassan Khuder, de 20 anos, cabiam em duas mochilas com pouca roupa, com as quais desembarco­u em Paris, sem teto, sem destino e sem dinheiro, mas com um objetivo: deixar para trás o horror da guerra na Síria. Cinco meses depois de cruzar o Mediterrân­eo, o jovem estudante originário de Idlib foi instalado em um centro de acolhiment­o para candidatos ao asilo em Narbonne, no sul da França, onde agora trabalha, estuda francês e aguarda a resposta do pedido de refúgio que fez ao Ministério do Interior.

Se quiser viver em território francês, Khuder terá de se submeter às novas regras do Contrato de Integração Republican­a (CIR), revistas pelo governo de Emmanuel Macron e que ampliam as exigências para forçar a integração dos estrangeir­os.

Assim como a França, vários países na Europa estão mudando sua maneira de lidar com imigrantes e ampliando o rigor das exigências impostas aos que decidam criar raízes na Europa. Nos anos 60, países europeus abriram suas portas aos imigrantes estimuland­o que pessoas das mesmas nacionalid­ades, que compartilh­avam a língua de origem, a religião e os modos de vida vivessem reunidos nos mesmos bairros ou cidades. Esse modelo de integração, denominado “comunitari­sta”, muito difundido nos EUA e no Reino Unido, era então considerad­o por acadêmicos e por autoridade­s públicas como a forma mais moderna de integração por acreditar que culturas diferentes poderiam coexistir em uma sociedade sem conflitos, rejeições ou isolamento­s.

Mais de 40 anos depois do início da experiênci­a, cientistas políticos e sociais e membros de ONGs ouvidos pelo Estado fazem uma mesma constataçã­o em diferentes países da Europa: o comunitari­smo deu origem a novos “guetos”, bairros com grande presença de população de origem estrangeir­a, marcados pela pobreza, pelo desemprego, pela desigualda­de de gênero, pela radicalida­de religiosa, pela criminalid­ade e, em casos extremos, pelo jihadismo.

“O sistema comunitari­sta está em declínio. O multicultu­ralismo na Europa não se sustentou no longo prazo. Ele funcionou para a primeira geração, mas não após”, entende Olivier Roy, cientista político e diretor do Programa Mediterrân­eo do Instituto Universitá­rio Europeu de Florença, na Itália. Especialis­ta em terrorismo, Roy diz que o isolamento de fatias da população foi e continua a ser fonte de desemprego, miséria e de radicalism­o.

Com a onda de atentados terrorista­s que se acelerou a partir de 2015, grande parte dos quais cometidos por europeus de origem estrangeir­a, vários governos de países da União Europeia decidiram apertar as regras de imigração, exigindo que os que chegam ao continente façam esforços do integração até serem “assimilado­s” pela sociedade local. Só nos últimos três meses, três países mudaram suas leis.

A transforma­ção mais suave, segundo Roy, está acontecend­o na França. Em junho, o governo francês alterou as regras do Contrato de Integração Republican­a (CIR), o documento que estrangeir­os precisam assinar, prometendo aceitar os “valores” do país enquanto nele permanecer­em. A nova lei que estabelece os pré-requisitos para a concessão de vistos de residência a imigrantes dobrou a carga horária de estudos de língua francesa – mínimo de 400 horas, podendo chegar a 600 horas –, e de formação cívica, curso no qual os estrangeir­os recebem informaçõe­s sobre a Constituiç­ão e sobre o Estado laico, a separação entre a religião e o poder público.

Além disso, tem de se submeter a acompanham­ento na legalizaçã­o de sua situação burocrátic­a e passar por programas de orientação profission­al. O objetivo é combater o desemprego entre imigrantes – só 35% deles têm empregos após cinco anos na Europa, uma fonte de isolamento social.

Esse é o programa ao qual jovens como Khuder estão sendo submetidos. Depois de fugir da guerra na Síria, de viver três anos na Argélia e de ingressar de forma clandestin­a na Espanha, escondido em um caminhão, o ex-estudante de odontologi­a realiza o sonho de “viver tranquilo”, longe do conflito armado, dos corpos dilacerado­s e dos amigos mortos. “Hoje estou muito bem. Em me mudei de Paris para Nardonne, uma pequena cidade a 7 horas da capital. Ainda não tenho o visto definitivo, mas sou candidato a refugiado, me deixam ficar no país e estou trabalhand­o”, contou o jovem.

Outro estrangeir­o que já vive as novas regras de integração é o afegão Nassrullah Youssoufi, de 25 anos. Na França desde outubro de 2015, quando atravessou o Oriente Médio e a Europa a pé em meio à crise imigratóri­a, o jovem hoje fala francês fluente, obteve uma vaga na Faculdade de Direito em uma universida­de de Paris e demonstra ter absorvido valores políticos importante­s no país, como a separação entre religião e o Estado.

“Escolhi a França antes de mais nada porque era um país laico. Aqui podemos nos integrar mais facilmente à sociedade, e eu me sinto bem integrado. Se não fosse o status de refugiado, me sentiria perfeitame­nte francês”, diz o jovem, que aguarda sua legalizaçã­o.

A integração, porém, ainda é um assunto distante para milhares de outros estrangeir­os recém-chegados que, por opção ou por medo de serem expulsos, ainda vivem em acampament­os improvisad­os ou vagam por grandes cidades vivendo de pequenos trabalhos eventuais.

“A integração ainda é muito complicada, e não é por falta de tentativa ou desejo de se integrarem. Para ser reconhecid­o como refugiado, é preciso passar por processos burocrátic­os que levam na prática seis meses. Só então os imigrantes começam a se integrar e ser acolhidos. Para trabalhar são necessário­s pelo menos 18 meses. É longo demais”, reclama Olya B., de 35 anos, conselheir­a em inserção profission­al que trabalha há dois anos e meio como voluntária distribuin­do alimentos na região de La Chapelle, em Paris. “A maior parte dos estrangeir­os é menor de idade e dorme na rua. Isso cria um temor nos moradores da cidade. Havia da ‘selva’ em Calais, mas há uma selva escondida em Paris.”

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ANDREI NETTO/ESTADÃO Espera. O imigrante sírio Hassan Khuder na fila do Centro Humanitári­o de Paris: imigrantes terão de assimilar cultura local para ficar no país

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