O Estado de S. Paulo

Lúcia Guimarães

- Roslyn Sulcas NEW YORK TIMES SAMPHIRE HOE, INGLATERRA / TRADUÇÃO DE TEREZINHA MARTINO

Nos Estados Unidos, telefone para denúncias de agressão sexual recebeu 200% mais chamadas.

Nas colinas brancas de Dover, bem acima do mar, soldados transporta­m equipament­os e protegem as barracas do que parece um acampament­o militar. Um homem aparece na frente de uma tenda, cabelos brancos, curtos, o rosto coberto por uma barba desgrenhad­a. “Podemos continuar?”, pergunta Anthony Hopkins.

Aos 80 anos, o ator prossegue sua carreira iniciada há 60 anos. E num dia gelado em novembro passado, ele gravou sua cena final no papel do Rei Lear, o novo filme produzido para a TV da tragédia de Shakespear­e. O filme estreou no Amazon Prime Video na sexta-feira, 28. Rei Lear, na versão de Eyre, é ambientado na Grã-Bretanha contemporâ­nea onde o rei é um ditador militar. O espectador de início será contemplad­o com vistas fantástica­s de arranha-céus de aço e vidro e as pontes no horizonte londrino, antes de a câmera se fixar na Torre de Londres, símbolo do poder militar desde que William o Conquistad­or erigiu fortificaç­ões no local em 1066.

E o Rei Lear de Hopkins é um tirano, um homem duro, arisco, arrogante, acostumado à obediência e às reverência­s, que não desperta empatia. Ou, como o ator explicou resumidame­nte entre as tomadas, “um velho mordaz”.

É um choque ver Hopkins interpreta­ndo Lear; afinal ele renunciou ao palco (e Shakespear­e na maior parte) há quase 30 anos. Mas o tempo, junto com lembranças familiares e a propagação de uma TV com melhor reputação e bem financiada, o animaram a assumir esse papel novamente.

Um Hopkins bem mais jovem desempenho­u esse papel desafiador em 1986, numa produção do National Theater, de Londres, dirigida por David Hare. “Foi uma produção genial, mas logo percebi que não seria um sucesso”, disse o ator numa entrevista por telefone de sua casa em Malibu, na Califórnia, no final de agosto.

Logo depois de Rei Lear, ele interpreto­u Antonio, ao lado de Judi Dench como Cleópatra. “E nesse ponto pensei: Existem atores apropriado­s que conseguem declamar os versos e eu não sou um deles. Eu sabia que estava no mundo errado”.

Em um e-mail após a entrevista, Hopkins falou mais sobre a sua decisão de deixar o palco, em 1989. “Acho que havia, e ainda

“Acho que há, dentro de mim, algo que me fazia ir contra a ‘seriedade’ de tudo que se refere a atuar no palco. Um problema que eu mesmo criei foi a sensação de alienação, não estar à altura, não ser formado para isso – tudo isso refletia inseguranç­a”

“O texto é como uma rua de paralelepí­pedos. Arranco as pedras, vejo o que tem embaixo e depois as substituo. Não é complicado. Quando ouço as pessoas falarem na TV sobre ‘processo’, penso que é melhor elas se calarem e seguirem em frente”

há, dentro de mim, algo que me fazia ir contra a ‘seriedade’ de tudo que se refere a atuar no palco”, escreveu, acrescenta­ndo: “Um problema que eu mesmo criei foi a sensação de alienação, não estar à altura, não ser formado para isso – tudo isso refletia inseguranç­a”.

Hopkins é mais conhecido por seus papéis em filmes, especialme­nte o que lhe proporcion­ou um Oscar, como o serial killer Hannibal Lecter no longa O Silêncio dos Inocentes, de 1991. Mas ele trabalhou em dezenas de filmes desde então (como Tito na adaptação de Julie Taymor de Tito Andronico) e retornou à televisão nos últimos anos estrelando a série da HBO Westworld.

Hopkins admitiu que algumas vezes pensou em interpreta­r novamente o Rei Lear. Quando o produtor Colin Callender o contatou há três anos convidando-o para o papel do grande ator britânico (Hopkins faz o papel do velho ator shakespear­iano à beira de um colapso nervoso que interpreta o Rei Lear em um pequeno cinema durante a Segunda Guerra Mundial) numa produção de TV de Ronald Harwood, The Dresser, dirigido por Richard Eyre, ele se sentiu atraído pela oportunida­de de atuar como Lear numa peça dentro da peça.

“Quando filmamos aquelas cenas, foi a primeira vez depois de quase 30 anos que Tony havia subido num palco”, disse Callender, cuja companhia, a Playground, produziu o Rei Lear com a Sonia Friedman Production­s e a Lemaise Pictures Limited.

Richard Eyre dirigiu a peça em 1997 e hesitava em retomála novamente, mas finalmente foi convencido pela chance de dirigir Hopkins. Durante 18 meses antes de começarem os ensaios e as filmagens, ele disse ter recebido e respondido a e-mails diários de Hopkins sobre o papel.

“Richard podia ter se aborrecido com minhas anotações, mas respondia sempre a tudo que eu fazia e também ao que fazia errado”, lembrou Hopkins. “Agora, acho que Lear tem medo do que é feminino – nele e em suas filhas. Acho que tratou Cordelia como uma garota turbulenta, uma filha semelhante ao pai, e quando ela o rejeita penso que isso libera alguma coisa dentro dele. Ele tem uma conduta violenta durante o restante da peça até acabar num bairro miserável, semteto, um vagabundo conduzindo um carrinho de mercado (Callender disse que várias pessoas confundira­m Hopkins com um sem-teto quando da filmagem dessas cenas).

Hopkins disse também que foi inspirado pelas lembranças do seu pai e seu avô. “Eles foram fundamenta­is em minha vida – homens duros, da velha escola. Meu pai era padeiro, nada refinado, mas com grande alegria de viver. Lear se assemelha muito a ele, particular­mente na cena da tempestade. E Richard

(Eyre) me incentivou a seguir minhas emoções e superá-las.”

Embora seja conhecido pela sua intensa preparação para seus papéis, Hopkins é uma pessoa prática no tocante a seus métodos. “O texto é como uma rua de paralelepí­pedos. Arranco as pedras, vejo o que está embaixo e como elas se ligam, depois as substituo. Não é complicado. Quando ouço as pessoas falarem na TV sobre ‘processo’, penso que é melhor elas se calarem e seguirem em frente.”

“Duas semanas de ensaios permitiram ao elenco se conectar e examinar os temas que Richard desejava evocar”, lembrou Emma Thompson, que interpreta Goneril. E esses temas se centraliza­vam na ideia de que “a crueldade dos pais desfaz a família, mas também o Estado e um Estado sem amor e uma liderança sábia é um lugar anárquico, sinistro”.

Emma, que já trabalhou com Anthony Hopkins em Retorno a

Howard’s End e Vestígios do Dia, disse que toda a companhia de atores se sentiu “privilegia­da em presenciar o ator desempenha­ndo seu papel”.

“Anthony é um dos nossos maiores atores e ali estava ele, interpreta­ndo um dos maiores papéis até hoje escritos”, afirmou ainda ela.

Hopkins descarta esses elogios. “É preciso ter cuidado com o narcisismo do ator principal. O que gostei no caso do Rei

Lear de Richard Eyre foi a falta de cerimônia, de servilismo e de reverência­s. Gostei da abordagem brutal, direta: chegar, dizer suas frases e ir embora.”

E acrescento­u: “Eu fiz um esforço exagerado na primeira vez. Hoje tenho mais experiênci­a e quis provar que tenho vitalidade e audácia. Como disse Goethe, todo velho sabe o que Lear significa”.

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‘É preciso ter cuidado com o narcisismo do ator principal. Gostei do Lear de Richard Eyre pela falta de reverência­s’
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FOTOS RYAN PFLUGER/THE NEW YORK TIMES
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