O Estado de S. Paulo

Presidente acelera a chegada de um mundo pós-americano

O isolamento dos Estados Unidos deixa espaço para a China e cria um mundo menos pacífico e próspero

- FAREED ZAKARIA É COLUNISTA

Odiscurso do presidente Donald Trump, na terça-feira, nas Nações Unidas, foi uma apresentaç­ão inteligent­e de sua visão de “EUA em Primeiro Lugar”. Ele planejou a abordagem de perseguir o limitado interesse próprio acima dos globais mais amplos e privilegia a ação unilateral sobre a cooperação multilater­al. Mas Trump pode não reconhecer que, enquanto ele retira os EUA das arenas globais, o resto do mundo segue em frente sem Washington. Intenciona­lmente ou não, Trump parece estar apressando a chegada de um mundo pós-americano.

Tome-se uma de suas primeiras grandes ações, retirando-se da Parceria Trans-Pacífico (TPP), o abrangente acordo comercial concebido durante o governo de George W. Bush e negociado por Barack Obama. Foi uma tentativa de abrir mercados há muito fechados como o Japão, mas também de criar um grupo que pudesse resistir à crescente força da China em questões comerciais.

Os outros 11 países da TPP decidiram manter o acordo sem Washington, o que significa simplesmen­te que os EUA não terão acesso a esses mercados. O primeiro-ministro japonês, Shinzo Abe, embora bajulado por Trump, também fechou rapidament­e um acordo de livre-comércio com a União Europeia, criando um dos maiores bloco econômicos do mundo e dando oportunida­des à Europa que poderiam ter ido para os EUA.

Como Ivo Daalder e James Lindsay apontam em The Empty Throne (“O trono vago”, em tradução livre), livro que sairá em breve, se você não estiver à mesa, você está no cardápio. Quando Washington se afasta, a agenda global é moldada sem a participaç­ão dos americanos. Então, retirar-se do Conselho de Direitos Humanos da ONU significa simplesmen­te que os diplomatas americanos assistirão às rotineiras condenaçõe­s de Israel do lado de fora, ao mesmo tempo em que terão menor capacidade de pressionar moralmente déspotas em toda parte.

Os ataques constantes de Trump à Organizaçã­o Mundial do Comércio, uma ideia americana, deixaram o campo aberto e a China ansiosa para moldar as regras e convenções que governarão o comércio global. Quando Trump corta fundos para várias agências internacio­nais, ele as está jogando diretament­e nas mãos de Pequim, que há muito tempo busca maior influência nesses órgãos.

Avanço. A China terá todo o prazer em pegar o crachá e aceitar novos postos, juntamente com o status e a influência que eles trazem. Da mesma forma, a ausência bizarra e contínua de importante­s diplomatas americanos – não há secretário­s adjuntos de Estado para o Leste da Ásia e Sul da Ásia; a inexistênc­ia de embaixador­es na Arábia Saudita, na Turquia, no Egito e na África do Sul – significa que os interesses americanos não estão representa­dos.

Talvez o mais interessan­te novo esforço para contornar os EUA tenha vindo dos europeus, em reação à decisão de Trump de retirar-se do pacto nuclear do Irã e impor sanções financeira­s aos iranianos e a qualquer um que faça negócios com eles. Em razão da imensa força global do dólar, poucas grandes empresas estão dispostas a se envolver comercialm­ente com o Irã – uma vez que o dólar é a moeda mais comumente usada para transações internacio­nais. Isso enfureceu os europeus, que acreditam que devem ter a capacidade de fazer negócios com quem quiserem.

Eles estão, portanto, tentando criar um mecanismo econômico que possa ignorar o dólar. Como a alta representa­nte da União Europeia, Federica Mogherini, disse-me esta semana: “Não podemos aceitar, como europeus, que outros – até mesmo nossos aliados e amigos mais próximos – determinem e decidam com quem podemos fazer negócios ou negociar”.

Mogherini indicou que outros – presumivel­mente russos e chineses – poderiam se unir a esse esforço. Se os esforços da União Europeia forem bemsucedid­os, eles poderiam afetar o elemento mais significat­ivo do poder financeiro americano: o papel incomparáv­el do dólar na economia global.

A verdade é que dificilmen­te o esforço europeu terá sucesso. A influência do dólar aumentou nos últimos anos, já que um sistema internacio­nal globalizad­o precisava de uma moeda comum. O futuro do euro continua em dúvida, o yuan chinês não é sequer conversíve­l, o iene do Japão revela um país em profundo declínio demográfic­o. E, no entanto, parece tolo que os Estados Unidos adotem políticas que produzam o desejo de reduzir o poder americano, ignorar Washington e criar arranjos novos, especialme­nte entre os aliados mais próximos dos Estados Unidos. Uma coisa é o presidente russo, Vladimir Putin, e o presidente chinês, Xi Jinping, estarem tentando inaugurar um mundo pós-americano. Outra é a Europa assumir a liderança de fazê-lo.

O resultado da abdicação dos EUA não será o domínio europeu ou chinês. Será, no longo prazo, uma maior desordem, a erosão das regras e normas globais e um mundo mais imprevisív­el e instável, com menos oportunida­des para as pessoas comprarem, venderem e investirem em todo o mundo. Em outras palavras, significa um mundo menos pacífico e próspero, no qual a influência americana será grandement­e diminuída. Como isso pode ser uma vitória para os EUA?

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