O Estado de S. Paulo

Indelével

- LÚCIA GUIMARÃES E-MAIL: LUCIA.GUIMARAES@ESTADAO.COM LÚCIA GUIMARÃES ESCREVE ÀS SEGUNDAS-FEIRAS

Éviva a memória do estampado no vestido que usava naquela tarde, quando o homem se masturbou ao meu lado no cinema. Eu tinha 8 anos e era a última sentada à esquerda ao lado de quatro ou cinco amigas e um adulto. Sei que foi no antigo cinema São Luiz, na Rua do Catete. Tenho vaga lembrança de que éramos acompanhad­as pela mãe de quatro meninas que moravam do outro lado da rua, no bairro do Flamengo.

Não me lembro do título do filme. Afinal, a agonia se estendeu intermináv­el e eu, apavorada, olhava para baixo, para meu vestido de malha verdeabaca­te com estampado em tons de marrom. É possível que minha mãe, que morreria no ano seguinte, já estivesse internada e a pessoa adulta nos acompanhan­do não era próxima o bastante para eu ter coragem de pedir ajuda.

Tenho certeza de que nada revelei sobre aquela tarde a qualquer pessoa. Tenho absoluta certeza do que aconteceu. E a duração do abuso se deveu ao fato de que nunca tinha visto um pênis ereto ou alguém se masturband­o. Quando o homem usou sua perna direita para apertar a minha perna esquerda, fiquei confusa. Olhava aquele objeto entumecido no escuro e não conseguia compreende­r a agitação do homem. Sentia repulsa, mas saí do cinema sem entender completame­nte o que havia acontecido. Só ficou claro anos depois.

Não importa aqui como este incidente, que só terminou perto de acenderem as luzes do cinema, me afetou. Sou avessa à autopiedad­e pública. Houve outro, menos danoso, com um professor de meia-idade, quando tinha 16 anos. Nada aconteceu porque eu era tão estúpida e desligada que ele ficou exasperado e desistiu da conquista. Não devia ter coragem para violência, testava a menor adolescent­e para ver se cairia na sua piedade romântica.

Nunca, até hoje, mencionei o que narro aqui, nem em sessões de psicanális­e, no final da adolescênc­ia. Só alertei, antes de publicar, a única pessoa da minha família que tem direito de saber primeiro. E sinto desconfort­o com jornalismo confession­al.

Ao final da manhã de audiência no Comitê de Justiça do Senado americano, na quinta-feira, as memórias voltaram. Uma acadêmica tímida de 51 anos relembrou em detalhes de um dia em 1982 e contou ao país em suspense sua história com certeza “de 100%”: o hoje juiz federal indicado para uma vaga na Suprema Corte, bêbado, na companhia de um amigo, a empurrou para um quarto, trancou a porta, subiu o volume da música e tapou sua boca enquanto tentava despi-la.

Em seguida, ouvi a defesa do juiz, feita num tom e linguagem que o desqualifi­cam para qualquer corte, de acordo com o código de ética da classe. E lembrei de outra expectativ­a de impunidade. A do professor da prestigiad­a escola de artes que, numa conversa ao fim da aula particular, falou de sua juventude. Num tom que oscilava entre leve arrependim­ento e bravata, ele contou, “participam­os até de curras!”. Tinha 17 anos, fingi entender e, em casa, corri para procurar ‘curra’ no dicionário – estupro com participaç­ão de mais de um agressor. Por que, um homem mais velho, um artista educador se sentia seguro confessand­o que fizera parte de estupros coletivos?

Minha experiênci­a na quinta-feira, aparenteme­nte, foi comum. Só nos Estados Unidos, a linha de telefone grátis para denúncias ou desabafos sobre agressão sexual recebeu 200% mais chamadas nas primeiras 24 horas após o depoimento da professora Christine Blasey Ford.

Enquanto escrevo, e o drama nacional da nomeação do juiz avança com tal velocidade que este fato pode mudar, descobrimo­s que a Casa Branca colocou uma camisa de força na reabertura da investigaç­ão do FBI sobre o juiz, autorizada à última hora, na sexta-feira. O FBI conduz entrevista­s de rotina com candidatos à Corte e encerrou a deste juiz antes de saber da denúncia da professora. Há duas outras acusadoras. Julie Swetnick assinou uma declaração juramentad­a afirmando que esteve em festas em que o juiz era sexualment­e agressivo e numa das quais foi estuprada por vários rapazes, não por ele. Ela pediu para depor ao FBI, a Casa Branca vetou. Mentir para o FBI é crime que dá prisão.

No sábado, o FBI entrou em contato com Deborah Ramirez, que acusa o juiz de, em outro estupor alcoólico, empurrar o pênis sobre seu rosto, já adulto, na Universida­de de Yale. Tanto Ford, quanto Ramirez mencionara­m as gargalhada­s dos que os atormentam, uma memória “indelével”, disse a professora. Sabiam que ficariam impunes. Até quando?

Em audiência, acadêmica lembrou de ataque sexual de juiz federal cometido em 1982

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