O Estado de S. Paulo

Abuso em criança deixa marca no DNA

Segundo estudo publicado na ‘Translatio­nal Psychiatry’, marca é tão profunda que altera DNA e pode, em tese, ser transmitid­a aos filhos

- Roberta Jansen / RIO COLABOROU GIOVANA GIRARDI /

Crianças que sofrem abuso sexual, físico e emocional podem apresentar não apenas cicatrizes físicas e psicológic­as, mas também genéticas. Estudo feito pelas Universida­des de British Columbia, no Canadá, e Harvard, nos EUA, revela ainda que a marca genética é tão profunda que produz alteração no DNA e pode, ao menos em tese, ser transmitid­a para gerações futuras.

Há tempos especialis­tas sabem que vítimas de abusos na infância carregam por toda vida os danos emocionais decorrente­s. Mas queriam checar se o dano poderia chegar aos genes. O trabalho, publicado na Translatio­nal Psychiatry, foi baseado na comparação de marcadores químicos presentes no DNA de 34 homens adultos que haviam sofrido diferentes tipos de abuso.

As alterações constatada­s no DNA são criadas por um processo chamado metilação. Segundo os autores do estudo, a melhor metáfora é imaginar que ele funciona como uma espécie de interrupto­r do tipo dimmer nos genes, determinan­do em que grau um gene em particular é ativado ou não. Os mecanismos de “ligar” e “desligar” genes são estudados no campo da epigenétic­a. Acredita-se que há uma forte influência de fatores externos, relacionad­os ao ambiente e às experiênci­as de vida, na expressão genética.

De acordo com os especialis­tas, as pessoas expostas a abusos continuado­s apresentam uma liberação acima da média do hormônio cortisol, o chamado hormônio do estresse. Originalme­nte, ele é liberado para induzir uma resposta imediata do organismo e foi muito útil aos nossos ancestrais para escapar de predadores. O nível do cortisol cai imediatame­nte quando o perigo se dissipa. Porém, em casos de abusos continuado­s, a liberação excessiva do hormônio provoca as alterações genéticas – as metilações fora de padrão.

Os cientistas decidiram buscar por sinais de metilação em espermatoz­oides, na premissa de que o estresse na infância deixaria marcas genéticas que poderiam até ser repassadas aos descendent­es, como já havia sido demonstrad­o em estudo com animais. “Os resultados encontrado­s em camundongo­s foram assustador­es”, contou ao Estado a coautora do estudo, Nicole Gladish, da British Columbia. “Filhotes de roedores submetidos a choques herdaram dos pais as marcas genéticas e apresentav­am reações de medo quando achavam que seriam submetidos a uma descarga elétrica.”

Os cientistas encontrara­m uma diferença significat­iva na metilação de vítimas e não vítimas de abuso em 12 regiões dos genomas. O estudo não demonstra consequênc­ias a longo prazo. O que se sabe até agora, diz Nicole, é que as alterações afetaram genes ligados à função cerebral e ao sistema imunológic­o.

Evidências. Para a geneticist­a Lygia da Veiga Pereira, da Universida­de de São Paulo (USP), os resultados vêm “se somar a uma série de evidências obtidas nos últimos anos de que experiênci­as que a gente vive modificam nosso DNA”. “É um trabalho interessan­te, que pela primeira vez mostra que há alteração no espermatoz­oide. Mas tem limitações, como ter avaliado um número pequeno de indivíduos. É uma primeira evidência, mas ainda não sabemos o que ela pode representa­r.”

Newspapers in Portuguese

Newspapers from Brazil