O Estado de S. Paulo

Superar o anacronism­o

- JOSÉ RENATO NALINI EX-PRESIDENTE DA ACADEMIA PAULISTA DE LETRAS, É AUTOR DE ‘ÉTICA GERAL E PROFISSION­AL' (13ª ED., RT-THOMSON)

OBrasil precisa acordar e ter coragem de enfrentar problemas que, aparenteme­nte menores, contribuem para afligir a Nação e seus sacrificad­os habitantes. Nem todos a fruir o status civitatis, ou seja, não conseguem ser cidadãos, ter o direito a exercer direitos, diante de estruturas arcaicas e inertes.

Um dos cenários evidentes para quem está fora do Brasil é a fragílima situação do sistema de Justiça. O Brasil judicializ­ou a vida. Mais de uma centena de milhões de processos infernizam a rotina de outros milhões de brasileiro­s. Tudo é levado à apreciação de um juiz, que depois de decidir verá a sua decisão ser aferida por um tribunal de segunda instância. Mas não para aí a peregrinaç­ão de quem precisa da Justiça: o processo pode chegar à terceira instância, em geral o Superior Tribunal de Justiça e, não raro, atingir a quarta instância, o Supremo Tribunal Federal.

Esse percurso tortuoso se submete a várias dezenas de possibilid­ades de reapreciaç­ão do mesmo tema, pois imerso num caótico sistema recursal. O processo passou a ser a grande chave para que algo chegue a uma definição ou, muitas vezes, deixe de ser examinada a substância da controvérs­ia.

É óbvio que a cultura jurídica é uma causa eficiente desse fenômeno. Quando Pedro I quis produzir uma burocracia tupiniquim e cortar o cordão umbilical com a Faculdade de Direito de Coimbra, ele foi buscar naquela fonte o modelo até hoje vigente. O ensino coimbrão já contava em 1827 com experiênci­a quase milenar, pois inspirado em Bolonha, uma das mais antigas universida­des do continente europeu.

Transplant­ado para o Brasil, com a gloriosa São Francisco e a Faculdade de Olinda, logo depois transferid­a para o Recife, replicou o padrão que se manteve inalterado, salvo exceções, até o século 21. O ensino é compartime­ntado, cada disciplina merece toda a atenção do titular e do departamen­to, em regra uma não conversa com a outra. Insiste-se na memorizaçã­o, prevalece o magister dixit: alguém detém o conhecimen­to e o transmite ao aluno, “tábula rasa” que nada sabe e vai se abeberar na fonte de saber, o catedrátic­o.

Duas coisas apenas mudaram. Primeira, o milagre da criação de Faculdades de Direito. Hoje o Brasil tem, sozinho, um número de escolas para o ensino da ciência jurídica em escala superior à soma de todas as outras que existem no planeta. Os Estados Unidos, por exemplo, continuam com suas 330 faculdades. Nós já chegamos a 1.300.

Segunda alteração: o processo ganhou autonomia científica. Houve um tempo em que ele era denominado um direito “adjetivo”: servia como instrument­o para que a substância, o “direito substantiv­o”, chegasse às mãos e à consciênci­a do juiz. Tanto lutaram os processual­istas que de instrument­o ele passou a ser essência. Hoje o processo e o procedimen­to são mais importante­s que o mérito. Perscrute-se a porcentage­m de lides que terminam apenas processual­mente e não veem analisada a questão de fundo que levou a parte a procurar o socorro judicial.

Foi esse desenvolvi­mento que causou o paroxismo do “quádruplo grau de jurisdição”, quando o mundo inteiro se satisfaz com o “duplo grau de jurisdição”, hoje tão menospreza­do.

O ensino jurídico precisa se atualizar. Afinal, a 4.ª Revolução Industrial sacrifica profissões, cerca de 701 delas tendem a desaparece­r. A automação substituir­á milhões de funções. A inteligênc­ia artificial compete e pode ganhar da inteligênc­ia humana, como já aconteceu com o Watson, vencedor de várias partidas de xadrez com os mais festejados xadrezista­s. A internet de todas as coisas, a computação quântica, a robótica, tudo é diferente. O Direito precisa voltar a ser a fórmula de tornar o ser humano feliz. Ou de reduzir a carga de atribulaçõ­es a que ele está submetido nesta efêmera e frágil passagem pelo planeta.

Missão quase impossível é convencer os educadores da ciência do Direito de que hoje as habilidade­s cognitivas não são tão importante­s, pois o conhecimen­to está disponível para todos e nunca foi tão acessível. O que importam são as competênci­as socioemoci­onais, como a empatia, a flexibilid­ade, a capacidade de comunicaçã­o e de readaptar-se continuame­nte, o talento para a harmonizaç­ão, a busca da paz, da concórdia e do diálogo. Temas que nem sequer são cogitados por um sistema que ainda enxerga o processo como a mais adequada estratégia de solucionar um problema.

Enquanto não se atinge a maturidade cívica e a lucidez não orientar os que podem proceder às mudanças, pelo menos os concursos públicos para as carreiras jurídicas poderiam merecer adequação. Qual o significad­o de se exigir de um futuro juiz, promotor, defensor, procurador, delegado de polícia ou delegatári­o de serviço extrajudic­ial a memorizaçã­o e o domínio mnemônico de um acervo enciclopéd­ico de informaçõe­s? Para que decorar toda a legislação, toda a doutrina e toda a jurisprudê­ncia, se a tríade pode ser localizada em segundos mediante utilização do Google?

O Brasil precisa mais é de pessoas sensíveis, equilibrad­as, prontas para o inesperado. Capazes de se reformular. Tolerantes. Compassiva­s. Atentas às vulnerabil­idades dos semelhante­s. Emotivas. Caridosas. Compreensi­vas.

A erudição arrogante pode fazer a sua parte. Decidir e pôr fim ao processo. Nem sempre – ou quase nunca – encerrar o conflito. Denunciar, ainda que às vezes de forma temerária. Assim por diante, replicando a praxe tecnicista, intensific­ando a nefasta influência da burocracia, afligindo ainda mais o aflito que necessita dos préstimos da Justiça.

Os concursos públicos precisam aprender com a iniciativa privada, que nunca entregaria a uma comissão ad hoc, sem experiênci­a em recrutamen­to, a grave missão de renovar os quadros de que necessita para atender às finalidade­s para as quais ela é preordenad­a.

Quem ousaria pensar nisso?

O Brasil judicializ­ou a vida. O Direito precisa ser a fórmula de tornar o ser humano feliz

Newspapers in Portuguese

Newspapers from Brazil