O Estado de S. Paulo

Balzaquian­a

- E-MAIL: MONICA.DEBOLLE@GMAIL.COM MONICA DE BOLLE ESCREVE ÀS QUARTAS-FEIRAS

Há poucas semanas, o general Hamilton Mourão, vice de Bolsonaro, defendeu a elaboração de uma nova Constituiç­ão “sem os eleitos pelo povo” pois, afinal, “já tivemos vários tipos de Constituiç­ão sem ter passado pelo Congresso”. Nos últimos dias, o adversário de Bolsonaro e candidato do PT Fernando Haddad disse que alteraria a Constituiç­ão “se o Congresso assim entender”.

Embora a declaração do petista se enquadre nos moldes da democracia brasileira, ao contrário da declaração do general, é curioso que as campanhas dos dois candidatos favoritos a disputar o segundo turno neste momento tenham se referido à necessidad­e de mudar a Carta Magna do País justo quando ela completa 30 anos. A Constituiç­ão brasileira foi aprovada pela Assembleia Nacional Constituin­te em 22 de setembro de 1988 e promulgada em 5 de outubro do mesmo ano. Trata-se, portanto, de uma balzaquian­a. Mulher experiente e emocionalm­ente amadurecid­a, ainda que possa ter lá seus defeitos como qualquer outra balzaquian­a.

Mulheres têm sido protagonis­tas nessas eleições tão estranhas. A elas fazem questão de se referir os candidatos nos debates na TV. Foram elas que organizara­m o movimento #EleNão, que ganhou não apenas as ruas do País, mas também as páginas da imprensa internacio­nal e a adesão de celebridad­es globais. A divisão dramática do País ficou evidente quando, um dia após os protestos contra Bolsonaro, houve manifestaç­ões apoiando o candidato da direita extrema em algumas cidades brasileira­s. As pesquisas de opinião continuam a mostrar que, apesar do peso das eleitoras, o candidato rejeitado por grande contingent­e das mulheres brasileira­s ganha novos adeptos e adeptas, todos aqueles eleitores que nele votarão para evitar o retorno do PT.

Que fique claro: o pior cenário eleitoral se consolida rapidament­e. Essa eleição não deveria ter se transforma­do em referendo sobre a democracia versus referendo sobre a corrupção, mas essa é a escolha com a qual se defrontará a população, por mais que o instinto de negação queira demonizar o outro lado para evitar a dor dessa realidade. Realidade que é fruto de circunstân­cias que escaparam do nosso controle.

Há os que querem se referir a Bolsonaro como “um fenômeno eleitoral”. Marketings e ingenuidad­es à parte, o candidato não é nada disso. Ao contrário, Bolsonaro é fruto do total desmantela­mento institucio­nal que o País vem atravessan­do nos últimos cinco anos. Começou com os protestos de 2013 que não tiveram resposta política para os anseios difusos da população que foi às ruas. Se intensific­ou com a má gestão econômica do governo de Dilma Rousseff e com a explosão da Lava Jato e suas revelações avassalado­ras. Ganhou ainda mais impulso quando o PSDB decidiu se juntar ao abjeto PMDB para pedir o impeachmen­t de Dilma, o impeachmen­t de coalizão que tentou abortar uma crise econômica anunciada e desacelera­r a Lava Jato, simultanea­mente. Dilma manteve seus direitos políticos, ao contrário do que manda nossa balzaquian­a Constituiç­ão, e deve se eleger senadora por Minas Gerais. Se isso não desmascara a farsa que nos trouxe à convulsão institucio­nal em sua plenitude, difícil é saber o que o faria. Por fim, a candidatur­a de Bolsonaro, do homem que

Essa eleição não deveria ter se transforma­do em referendo sobre a democracia versus referendo sobre a corrupção

defende a tortura, a morte, e que acha a democracia espécie de brincadeir­a de mau gosto, foi selada pela ânsia de Lula e do PT. A ânsia de voltar ao poder como espécie de revanche, de vingança histórica. Não tivesse o PSDB participad­o do impeachmen­t e do desde sempre moribundo governo Temer, hoje teria chances de eleger um candidato. Não tivesse o PT lançado uma candidatur­a nessas eleições, não haveria Bolsonaro.

Bolsonaro é o sintoma da indignação profunda, da raiva, da traição do PT que, prometera entregar prosperida­de, mas se rendeu com facilidade às engrenagen­s da corrupção brasileira, assim alcançando patamares jamais vistos. Haddad até seria um bom candidato, não estivesse ele concorrend­o pelo PT. Mas está. E, desse modo, viabilizou Bolsonaro.

Em meio ao abismo que se anuncia, ninguém haverá de comemorar a conquista de 30 anos de Constituiç­ão. Afinal, quem se importa ante a cegueira que acometeu o País?

ECONOMISTA, PESQUISADO­RA DO PETERSON INSTITUTE FOR INTERNATIO­NAL ECONOMICS E PROFESSORA DA SAIS/JOHNS HOPKINS UNIVERSITY

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