O Estado de S. Paulo

‘Canto Guerreiro’

Sem gravadora, Renato Braz faz parcerias com Chico, Gil e Milton em disco.

- HÉLVIO ROMERO/ESTADÃO

Há algo de milagreiro no jeito de Renato Braz tocar o barco. As coisas simplesmen­te acontecem. Ele canta sua música com a devoção de um beato, produz seu disco com o detalhamen­to de um cientista e, finalmente, o entrega para o vento. O vento faz então o álbum passar pelo amigo Marcos Barreto, que se emociona e o deixa na casa do colega jornalista, que se espanta e liga para Renato. Gravado à base de gentilezas e paixões, sem gravadora, selo, assessoria de imprensa ou estratégia­s em redes sociais, Canto Guerreiro – Levantados do Chão é feito de um talento transborda­nte e comovente.

Braz é dos cantores que equilibram a lágrima na voz sem deixá-la cair. Fica o fio de choro o tempo todo. Aprendeu com Milton Nascimento. Sua escolha de repertório parece passar por um critério poético apurado, sem desperdiça­r sílabas. Ouvir Chico Buarque ajuda. E sua divisão de deslocamen­tos sutis o faz ter vida mesmo nas profundeza­s de uma canção. Abençoado Gilberto Gil. Quando percebeu os 50 anos a caminho, o cantor resolveu fazer sua comemoraçã­o em disco e mandou os convites. Milton aceitou, Chico aceitou e Gil aceitou. A festa se converteu em um encontro de pessoas que há muito não se cruzavam em um estúdio. “Como fizemos coisas bonitas nessa vida, né meu parceiro?”, disse Chico a Milton, depois de ouvirem o resultado de

Levantados do Chão. “Eu queria ter essa foto na minha cabeceira para sempre”, conta Braz. “Olha aí o violão mais bonito do Brasil”, falou Milton olhando para Dori Caymmi.

O resultado é um álbum dos mais belos, sobretudo, pela voz de Renato Braz. As pessoas que estão a seu redor não vieram por pagamentos ou piedade, mas por o conhecerem de tempos. São mestres que se tornaram patrimônio pessoal. Milton, Chico, Gil, Dori, Cristóvão Bastos, Alice Passos, Cezinha Oliveira, Eduardo Gudin, Guinga, Karine Telles, Miúcha, Proveta, Nelson Ayres, o saxofonist­a norte-americano Paul Winter, o português Roberto Leão e o baixista Rodolfo Stroeter estão entre eles. Mario Gil fez com Renato a direção e Carolina Gouveia, a produção. “Há um ano e meio falei com Mário

Gil: ‘Cara, preciso encontrar o Milton Nascimento, ele é minha maior referência, o cara que mais ouvi na vida’.” Inspirado pela ideia de Mario Gil, o que seria um disco com Milton se tornou um álbum com todos.

De Milton e Chico, Levantados do Chão, no vocal aberto e cheio de brilho de Renato, ganha pegada mesmo na bateria leve de Jurim Moreira. O piano é de Cristóvão Bastos. Há algo de sublime em canções como Sonho Impossível, a versão que Chico Buarque e Ruy Guerra fizeram para o musical O Homem de La Mancha, de 1972. A artilharia é pesada. Dori faz o violão e um quarteto executa as linhas de violoncelo que ele escreveu. Renato começa a parte em português e, depois, entra Chico cantando em francês. Já era o céu quando a canção volta para o português na voz de Milton Nascimento. E quase não há fôlego para o resto.

Quando chega Cálice, outro momento de encontro entre Chico e Milton, já passaram Pajé

(Mario Gil e P.C. Pinheiro); Longe de Casa Eu Choro (de Gudin e Paulo Vanzolini), com o violão de Gudin; e Ne Me Quitte Pas

(com Miúcha no canto). Mas

Cálice é um arrebatame­nto, atualizada em cada palavra, reforçada em cada compasso. Além de Braz, cantam Milton, Chico, Roberto Leão e Mario Gil, com solo de sax de Paul Winter. Haverá depois ainda Gil em O Fim da História; Xote, deliciosa nas mãos de Zezinho Pitoco na zabumba, Ayres no piano elétrico e Rodolfo Stroeter, parceiro de Gil na canção, no baixo.

Blackbird, no finzinho, vem toda graciosa, com piano sobre o violão de Paul McCartney, impossível de ser mudado. Mas a voz é de Antonio Garfunkel Braz, filho de Renato.

Não há nada de milagreiro no jeito de Renato Braz tocar seu barco. Cada nome está ali a seu lado por saber o quanto tem de verdade na voz do anfitrião. O vento faz o resto.

Milton Nascimento, ele é minha maior referência, o cara que mais ouvi na vida”

Renato Braz CANTOR

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 ??  ?? Um a um. Interpreta­ção envolvente atraiu ainda Dori Caymmi, Miúcha e Eduardo Gudin para o disco
Um a um. Interpreta­ção envolvente atraiu ainda Dori Caymmi, Miúcha e Eduardo Gudin para o disco
 ?? HÉLVIO ROMERO/ESTADÃO ?? Rodeado por cordas. Cantor de 49 anos começou na noite com covers de Tim Maia
HÉLVIO ROMERO/ESTADÃO Rodeado por cordas. Cantor de 49 anos começou na noite com covers de Tim Maia
 ?? RENATO BRAZ ?? Encontro. Mario Gil, Chico, Milton e Renato Braz no estúdio
RENATO BRAZ Encontro. Mario Gil, Chico, Milton e Renato Braz no estúdio
 ??  ?? RENATO BRAZ ‘Canto Guerreiro’ Independen­te / Preço médio: R$ 30
RENATO BRAZ ‘Canto Guerreiro’ Independen­te / Preço médio: R$ 30

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