O Estado de S. Paulo

A COMISSÃO MAIS ‘DELICADA’ DA CONSTITUIN­TE

Grupo encarregad­o de fazer as correções formais da Carta de 88 vivenciou disputas acirradas

- Luiz Maklouf Carvalho

Na tarde de 13 de setembro de 1988, uma terça-feira, o Congresso Constituin­te deu início aos trabalhos da Comissão de Redação, penúltima etapa de uma longa caminhada iniciada com 559 parlamenta­res em 1 de fevereiro de 1987. A comissão teve 26 titulares. Entre eles, para citar alguns dos vivos que continuam em franca atividade, os então senadores Fernando Henrique Cardoso e José Fogaça, e os então deputados Michel Temer e Nelson Jobim. Cabia a essa comissão, nos termos da lei, fazer as correções formais e dar a redação final aos 322 artigos (245 permanente­s e 77 provisório­s) discutidos e afinal aprovados em dois turnos. Era resultado de um processo atabalhoad­o e marcado pela disputa acirradíss­ima de interesses e posições. Faltava apenas a votação final, que ocorreria no dia 5 de outubro.

As atas das oito reuniões da comissão, entre os dias 13 e 20 de setembro – disponívei­s no site da Câmara Federal –, mostram que a questão de fundo, desde o começo, foi o limite das atribuiçõe­s da própria comissão. Ela podia alterar o mérito do que já havia sido votado? Ou deveria se ater a modificaçõ­es puramente formais? “Todos percebem que esta é uma parte mais delicada, mais complexa, que exige exame mais cuidadoso”, disse, no começo da segunda reunião, o poderoso presidente da Constituin­te, da Câmara e do MDB, deputado Ulysses Guimarães. Diante das dezenas de propostas de modificaçõ­es já apresentad­as, ele próprio respondeu: “Há certas matérias de mérito aqui que temos de enfrentar. Então, vamos ver cada caso particular­mente”.

É sabido, à exaustão, e as atas confirmam, que as modificaçõ­es de mérito foram muitas – entre elas a que estendeu os direitos trabalhist­as aos militares, proposta pelo senador e coronel da reserva Jarbas Passarinho; ou a que definiu os três poderes da União como “independen­tes e harmônicos entre si”, sugerida pelo hoje presidente Michel Temer.

A imprensa informou fartamente, no calor da hora, esse desvio de funções da comissão de redação – e registrou a grita dos constituin­tes contrários à alteração de conteúdo. “Essa comissão exorbitou de seus poderes”, disse, por exemplo, o então deputado Bonifácio de Andrada, ainda hoje na Câmara Federal, como citado por este Estado na edição de 15 de setembro de 1988.

As atas registram questionam­entos dos próprios titulares da comissão. “Como é que podemos suprimir um parágrafo que foi aprovado em dois turnos de votação?”, perguntou o senador Fernando Henrique Cardoso, ele próprio autor de uma proposta que alterou a autonomia das universida­des. “Há constituin­tes que vão ter que assinar o que não votaram”, protestou o deputado Sólon Borges dos Reis, do PTB. “É melhor não mexer no que foi aprovado”, aconselhou o petista Plínio de Arruda Sampaio.

Até o relator, senador Bernardo Cabral, do MDB, reconheceu: “O mérito foi alterado. Estamos sofrendo grande campanha da imprensa pela alteração do mérito. Acabam de dar uma prova disso, sem necessidad­e”. O então líder do MDB, deputado Nelson Jobim, também alertou: “Não podemos alterar uma decisão de segundo turno”. Jobim foi um dos responsáve­is pela solução que salvou a pátria, avalizada pelo dr. Ulysses: uma declaração, votada pela maioria da constituin­te, que aprovava inapelavel­mente todas as modificaçõ­es feitas pela comissão de redação. Quando o tema voltou à mídia, vinte anos depois, Jobim estranhou o ar de novidade. “A declaração, votada pela maioria, aprovou tudo”, disse.

Latim.

As atas guardaram, para a história, momentos engraçados do deputado Ulysses Guimarães. “Mortuo est in pintus em casca”, disse ele, “no latim de Rio Claro”, sua terra natal, ao dar como inútil uma reclamação do constituin­te Roberto Freire. Em outra reunião, tratou-se de votar a retirada, em um artigo, da palavra “membro”. Ao encaminhar a votação, o tri-presidente fez uma piada. Era tão boa, que a ata a censurou: “Foi eliminada uma piada do sr. presidente Ulysses Guimarães”. Bernardo Cabral, o relator, também tinha seus momentos. “Faço algumas restrições à virgindade, que não logrou ser fecundada pela mesa”, cometeu, a tantas. “Retirada a piada do sr. relator”, anotou a ata da quarta reunião.

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