O Estado de S. Paulo

Brasileira, aos 30

País concede pela 1º vez nacionalid­ade a uma apátrida.

- Jamil Chade CORRESPOND­ENTE / GENEBRA

“Não desistam do Brasil.” O recado emocionado é de Maha Mamo que, com 30 anos, finalmente ganhou a primeira nacionalid­ade da vida. “Hoje é meu aniversári­o e nasci brasileira”, disse. Pela primeira vez, o governo concedeu a nacionalid­ade a duas apátridas que receberam o reconhecim­ento por parte do Estado. O anúncio ocorreu ontem, em Genebra, e as beneficiad­as foram as irmãs Maha e Souad Mamo.

A iniciativa foi mantida em sigilo e o governo usou um evento na Organizaçã­o das Nações Unidas (ONU) para informar Maha. Com uma bandeira brasileira enrolada orgulhosam­ente no pescoço, a nova cidadã brasileira não conteve as lágrimas. “No Brasil, pela primeira vez, andei como uma pessoa, e não como uma sombra.”

A naturaliza­ção foi entregue pelo coordenado­r-geral do Comitê Nacional para os Refugiados (Conare), Bernardo Laferté, cujo avô era apátrida e foi acolhido no País. “O Brasil concede a nacionalid­ade a essas irmãs, reafirmand­o sua tradição de proteção de todos os imigrantes e seu compromiss­o de redução da apatridia no mundo”, disse o representa­nte do governo, que tampouco segurou as lágrimas.

Segundo ele, a iniciativa é resultado da nova Lei da Migração, que entrou vigor em novembro de 2017, garantindo residência e um processo de naturaliza­ção simplifica­da. “A concessão de nacionalid­ade a Maha e Souad Mamo cumpre com o compromiss­o do Brasil com as Convenções da ONU sobre o Estatuto dos Apátridas e para a Redução dos Casos de Apatridia”, indicou comunicado oficial.

Dados do Alto Comissaria­do das Nações Unidas para Refugiados apontam para a existência de cerca de 10 milhões de pessoas em todo o mundo sem nacionalid­ade. Os resultados dessa situação levam muitos a não ter documentos de identidade e, portanto, não conseguire­m nem abrir uma conta bancária ou ter acesso ao sistema de saúde.

Reconhecim­ento.

De acordo com um comunicado do Ministério da Justiça, “as duas pessoas beneficiad­as e seus irmãos se encontrava­m em um limbo jurídico que não os permitiu reconhecim­ento de nacionalid­ade no Líbano, país onde nasceram, nem na Síria, local de origem de seus pais”. “Pelo fato de serem de religiões diferentes, os pais não tiveram seu casamento registrado na Síria. Os filhos, que nasceram no Líbano, não foram reconhecid­os como libaneses nem como sírios.”

“Os primeiros problemas começaram na escola, que nos aceitou por um favor. Mas os problemas estavam só começando”, relatou Maha. “Eu tenho uma alergia e não tinha acesso aos hospitais.” Ela ainda desistiu de jogar basquete, já que não podia entrar em jogos oficiais e apenas treinava. Tampouco foi aceita na Faculdade de Medicina, por não ter documentos. Cartão de crédito, passaporte para ir viajar, carteira de motorista e até celulares estavam em nome de outras pessoas ou simplesmen­te não existiam.

Após entrar em contato com várias representa­ções diplomátic­as, em 2014, ela, sua irmã e seu irmão embarcaram para o País. Sem saber para onde ir, encontrara­m uma família em Belo Horizonte que os aceitou. “No primeiro dia, eles me disseram para tomar um café e, quando entrei na sala, havia um banquete para nós. Foi o primeiro choque cultural”, riu a nova brasileira. Ela também ironiza o fato de que, assim que recebeu documentos como refugiada, ganhou também um CPF “para poder pagar impostos”.

A procura oficial por uma nacionalid­ade continuou. “Nossa luta seguinte foi a de conseguir uma lei que conseguiss­e facilitar o processo para os apátridas. Isso conseguimo­s”, comemorou a nova cidadã brasileira.

Ela também já viveu a pior parte da realidade brasileira. Seu irmão foi assassinad­o em 2016, em uma tentativa de assalto em Belo Horizonte, provavelme­nte por não conseguir entender o que os ladrões pediam. “Depois daquilo, muita gente me dizia que eu tinha de sair do Brasil. Mas fiquei. O Brasil nos deu vida.”

Sua tristeza com a morte do irmão apenas foi superada depois de ela entender que tinha uma missão. “Um mês depois de sua morte, recebemos um atestado de óbito. Ele nunca teve uma certidão de nascimento. Mas, por estar no Brasil, ganhou o privilégio de um atestado quando morreu. Eu decidi lutar por isso, pela dignidade. Meu trabalho só está começando e essa é minha missão.” Em uma quinta-feira ensolarada nos jardins da ONU, ontem, ela teve algo a mais a dizer: “Eu finalmente existo.”

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JAMIL CHADE / ESTADÃO Reconhecid­a. ‘No Brasil, pela 1ª vez, andei como uma pessoa, e não como uma sombra’, disse a nova cidadã nacional

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