O Estado de S. Paulo

Brasil se prepara para enfrentar crise financeira única

País precisa de um terceiro tipo de crise para se enquadrar; na essência, trata-se de uma batalha consigo mesmo

- ROBERTO MUNIZ / TRADUÇÃO DE

Rudi Dornbusch, um conceituad­o economista que morreu em 2002, dizia que existem dois tipos de crise monetária. A crise pré-anos 90 é do tipo que avança lentamente. Ela começa com uma taxa de câmbio supervalor­izada, que dá origem a um déficit comercial. Reservas em moeda estrangeir­a, então, começam a ser gastas gradualmen­te para cobrir esse déficit. Quando elas se esgotam, a moeda despenca e o ministro da Fazenda é demitido. Mas a vida continua e o mundo não entra em colapso.

O segundo tipo de crise é simplesmen­te o primeiro bombado a esteroides. Um país que esbanjou empréstimo­s do Banco Mundial em políticas erradas ainda consegue ir ao mercado de capital global em busca de bilhões de dólares para continuar usando mal. Bancos domésticos entram na festa. A economia continua crescendo. Quando o fluxo de capital se reverte subitament­e, a moeda despenca e a falência se generaliza. O estrago é suficiente­mente grande para afetar outros países.

O Brasil parece precisar de um terceiro tipo de crise para se enquadrar. As eleições deste mês vão decidir quem será o próximo presidente e qual será o perfil do novo Congresso.

Os dois corpos de governo vão então definir a resposta a uma crise financeira de avanço lento. O drama pode se limitar ao mercado financeiro. Já seu impacto pode ir mais longe. O Brasil, porém, não mostra sinais de uma crise de balança de pagamento à moda antiga. O País não está à mercê do capital global. Sua crise, em essência, é uma batalha consigo mesmo.

Compare-se o Brasil à Argentina e à Turquia, que entraram ambos neste ano no olho das tempestade­s do mercado. Eles mostram o quadro de uma crise monetária. Ambos têm grandes déficits na balança corrente, um forte componente da balança comercial. Esses déficits foram financiado­s com empréstimo­s estrangeir­os, a maioria deles em dólar. Os dois países têm inflação alta. Em ambos as reservas em moeda estrangeir­a são baixas. O Brasil é diferente. Sua balança corrente está bem equilibrad­a. A inflação está próxima de um recorde de baixa. Suas fortes reservas monetárias ultrapassa­m em muito sua dívida em dólares.

O problema do Brasil é que as finanças do governo estão num caminho perigoso. A dívida pública cresceu de 60% para 84% do Produto Interno Bruto (PIB) em apenas quatro anos. Isso se deve em grande parte a um colapso na receita depois de 2013. A recessão brutal também não ajuda. Mas o Orçamento tem sido beneficiad­o por inesperada­s receitas de um boom na mineração e por um consumo alimentado pelo crédito.

A terceira via. Isso significa que cortes em gastos são necessário­s para consertar as finanças públicas. A massa salarial do governo cresceu rapidament­e. Mas as pensões excessivam­ente generosas são um problema muito maior. Elas já representa­m 55% dos gastos públicos sem juros. O custo continuará aumentando conforme o Brasil envelhece. As coisas certamente seriam piores se não fosse por uma emenda constituci­onal em 2016, que limita o aumento dos gastos públicos. Uma tentativa de reforma nas aposentado­rias foi abortada quando o presidente Michel Temer foi implicado nos escândalos de corrupção que viram um de seus antecessor­es sofrer o impeachmen­t e outro foi enviado para a cadeia.

Em um Brasil diferente, a política buscaria a conciliaçã­o das reivindica­ções dos detentores de títulos (que são quase todos os poupadores brasileiro­s), aposentado­s, funcionári­os públicos bem pagos e o restante do País. Em vez disso, para equilibrar as contas, o último desses grupos sofreu um aperto nos serviços públicos e nos padrões de vida. E a crise da corrupção tragou a classe governante. Os principais candidatos à Presidênci­a são figuras polarizado­ras que podem ter dificuldad­es para conduzir a reforma previdenci­ária através do Congresso. O ponto crítico pode vir em agosto do ano que vem, se não antes, diz Arthur Carvalho, do Morgan Stanley, quando um Orçamento para 2020 será submetido. Se a reforma da Previdênci­a não estiver em vigor, será necessário um grande aperto em outros lugares para que o País fique abaixo do limite de gastos, diz ele. Ou o próprio limite terá de ser elevado.

Os portadores de títulos ficariam assustados. Embora os estrangeir­os tenham pouco da dívida do Brasil, ainda haveria fuga de capitais, uma moeda em queda e aumentos no rendimento dos títulos. Com os poupadores brasileiro­s antecipand­o a inflação e o caos que resultaria da crescente dívida pública, eles procuraria­m escapar dela. Os poupadores em outros lugares da América Latina há muito usam contas em dólar como um escudo contra a inflação. Isso seria novidade para os brasileiro­s, diz Carvalho. Mas como as taxas de juros de curto prazo foram reduzidas para refletir a inflação moderada, o custo de oportunida­de de retirar dinheiro do Brasil raramente foi menor.

Nada jamais é inteiramen­te novo. Os sintomas das crises anteriores no Brasil foram inflação alta e déficits externos. Mas abaixo da superfície, o problema subjacente era a política fiscal negligente, diz Arminio Fraga, da Gávea Investimen­tos, um fundo de hedge, e exgovernad­or do Banco Central do Brasil. No tipo de crise de evolução lenta, disse Dornbusch, uma correção no meio do caminho pode evitar o pior. O Brasil ainda pode administra­r isso. Se não puder, seu declínio provavelme­nte vai se acelerar drasticame­nte.

Se não conseguir administra­r uma crise de evolução lenta, declínio do País pode se acelerar drasticame­nte

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WILTON JUNIOR/ESTADÃO - 26/12/2003 Choque. No Brasil, a crise da corrupção tragou a classe governante
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