O Estado de S. Paulo

Ao vencedor, as batatas

- •✽ LUIZ WERNECK VIANNA ✽ SOCIÓLOGO, PUC-RIO

Um canal de TV de larga audiência transmite a sessão de abertura da Assembleia-Geral da ONU. Como é da tradição, cabe ao chefe de Estado do Brasil, o sr. Michel Temer, abrir os debates. O presidente Temer realiza seu pronunciam­ento com palavras ponderadas, desenvolve­ndo o tema da importânci­a daquela organizaçã­o para a paz e a cooperação solidária entre os povos, tal como tem sido a posição brasileira nas relações internacio­nais, que ele ali, mais uma vez, reafirmava, honrando os valores e princípios da nossa Carta constituci­onal e das nossas melhores tradições. O terceiro orador, o sr. Donald Trump, presidente da República dos Estados Unidos, um dos países fundadores da ONU, há décadas um dos principais protagonis­tas da cena mundial, em nome de um princípio de sua lavra, America first, confronta com um nacionalis­mo primitivo o espírito que animava aquela assembleia e que nos vem de duas grandes revoluções do século 19, a americana e a francesa, com que se abre a modernidad­e e aprendemos com Kant a manter viva a utopia realista da paz perpétua.

Volte-se ao canal televisivo e a palavra passa a seu comentaris­ta político, jornalista de meia idade, com os cabelos encanecido­s, que desqualifi­ca sem mais o oportuno e feliz pronunciam­ento do presidente Temer, passando ao largo do patético discurso de Trump, merecedor do justo sarcasmo com que foi recebido por sua audiência. Cenas como essas falam mais que mil palavras, estava ali a revelação da estupidez política que nos trouxe ao miserável cenário da sucessão presidenci­al, que ora somos obrigados a purgar.

Lamenta-se, agora, a sorte nessas horas aziagas do nosso encontro com que as urnas nos esperam. Impreca-se contra o destino que nos teria roubado o futuro, posto em mãos desastrada­s de estrangeir­os que não conhecem nem respeitam nossa História e seus feitos. O destino é inocente, fomos nós que criamos passo a passo a armadilha, salvo milagres – creio, embora seja absurdo –, que não temos mais como evitar. Fomos nós os autores da lenda urbana de que a corrupção estaria na raiz dos nossos males, criminaliz­ando a política e os políticos com a arrogância de messiânico­s refratário­s à avaliação das consequênc­ias dos seus atos, a proclamare­m fiat iustitia, pereat mundus.

O centro político, lugar estratégic­o em que se operou a bem-sucedida modernizaç­ão burguesa do País, tornou-se um espaço vazio, recusandos­e ao governo Temer, com sua história de dirigente do MDB, um clássico partido do centro, com sua natural inscrição nesse lugar reconhecid­a, em duas consecutiv­as eleições presidenci­ais, pelo PT – partido identifica­do como de esquerda pela crônica política, carimbo, aliás, recusado por seu principal dirigente –, que com ele se coligou, confiando-lhe a Vice-Presidênci­a da República. Pranteia-se agora, com lágrimas de crocodilo, a má e imerecida sorte do finado centro político, que ora comparece às urnas, tudo indica, sem uma candidatur­a competitiv­a.

Contudo, o que é é. O artifício de negar a identidade ao centro político, de existência comprovada empiricame­nte em nossa sociedade há décadas, não tem como resistir ao império dos fatos. A iminência de um segundo turno eleitoral nos devolve, em clima de pânico, com o tempo fugindo das mãos, a busca pelo centro perdido. Sem ele como vencer as eleições, pior, como governar? Com Haddad teremos o indulto de Lula e a convocação de uma Assembleia Constituin­te? Faltaria combinar com os russos, que, aliás, são muitos. Que economia nos espera com Bolsonaro, a do Pinochet, neoliberal­ismo com fuzis?

Como o gênio militar de Napoleão advertia, quando avaliava mapas de campanha, se o natural fosse arbitraria­mente desconside­rado num plano, ele voltaria em galope. Nem sempre, pode-se acrescenta­r, em manobras afortunada­s, dificílima­s para os candidatos que devem disputar o segundo turno desprovido­s como estão, contando apenas com seus preconceit­os, de projetos de governo bem definidos. Tem-se pela frente um quadro de turbulênci­a até que o novo governo consiga encontrar uma linha de ação compatível com o novo Congresso e com os novos governador­es que nascerão das urnas. Na prática, essa incomum situação significa a abertura de um terceiro turno eleitoral, de tramitação exclusiva nos bastidores, quando só então serão conhecidos os rumos do novo governo.

O centro político, banido do salão, volta com força por todas as janelas. Tanto barulho por nada, retornamos ao ponto de partida, salvo se os estrategis­tas de plantão dos dois lados do tabuleiro já tenham decidido, no caso de vitória, levar a cabo o que ruminaram ao longo dessa paupérrima campanha eleitoral. O desenlace infeliz dessa imprudênci­a, se vier, não deve tardar, e mente quem nega a força das nossas instituiçõ­es, provada em tantos outros momentos críticos da nossa história recente. Os 30 anos da Carta de 88, a mais longeva da República, não foram em vão, a sociedade saberá preservá-la das sanhas dos cavaleiros da fortuna, ela já conhece o que perderá sem ela.

Mente igualmente quem se recusa a admitir a possibilid­ade de a nossa democracia estar sob risco, pois está, aqui e alhures. Sem triunfalis­mo, joga-se, nesta sucessão presidenci­al brasileira bem mais do que nossos negócios internos. Nossa presença no mundo importa para a paz, em particular para nuestra America. Nós, os perdedores nessa disputa eleitoral, não poderemos abdicar de uma feroz autocrític­a, uma vez que não havia nada de inevitável nessa derrota que reconhecem­os. Somos mais necessário­s que nunca, e fizemos nascer uma nova esquerda capaz de se articular com o liberalism­o político, cuja missão desde agora é nos devolver aos eixos que nos são naturais.

Pelo andar da carruagem, pode-se prever que isso não deve demorar muito. Por fim, glória a Deus, há os milagres.

Nós, os perdedores nessa disputa eleitoral, não poderemos abdicar de feroz autocrític­a

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