O Estado de S. Paulo

Como reinventar o Brasil

- MURILLO DE ARAGÃO

Aagenda de reformas está posta desde 1994. Mas avança aos soluços e ao sabor das circunstân­cias e da imensa dificuldad­e de obter consenso. A dificuldad­e de reformar o Brasil decorre do fato de haver duas frentes de interesses simultânea­s que lutam entre si e contra a cidadania.

Uma é a da defesa dos interesses das corporaçõe­s e oligarquia­s, que não abrem mão de seus privilégio­s; é o Brasil da estabilida­de trabalhist­a; é o Judiciário dos pendurical­hos, dos incentivos e benefícios fiscais, entre muitos outros privilégio­s. A defesa de privilégio­s não tem cor ideológica e apenas uma vítima: a cidadania.

A outra frente é a tentativa de setores ditos progressis­tas consolidar­em um regime conservado­r de esquerda no Brasil. Digo conservado­r por se ancorar em fórmulas há muito abandonada­s no restante do mundo. Atuam para barrar as reformas, já que o fortalecim­ento das instituiçõ­es e o seu melhor funcioname­nto são um empecilho à tomada do poder. Daí existir uma campanha quase que permanente de enfraqueci­mento dos Poderes e das instituiçõ­es. Reformá-las é fortalecer um regime que deve ser derrubado.

A agenda, porém, está posta. A Previdênci­a está quebrada e o sistema tributário, caótico. Como promover as reformas de que o País necessita? É preciso dizer que o Brasil é uma obra em construção que não está dando certo. Seu modelo de Estado, grande, intervenci­onista e estatizant­e, deixou de funcionar há tempos. E, ao invés de buscar a reinvenção, o Estado segue a cartilha dos puxadinhos, que resolvem temporaria­mente parte dos problemas e adiam o confronto final.

Apenas as crises tendem a empurrar o Brasil para o enfrentame­nto da agenda de reformas. E se dependemos de crises para avançar, a que temos nos dias de hoje pode ser o vetor de grandes transforma­ções.

Um Brasil quebrado pelo regime João Goulart resultou nas reformas da dupla Otávio de Bulhões e Roberto Campos. A inflação alta gerou o Plano Real, em 1994, que, por sua vez, levou às reformas constituci­onais promovidas por Fernando Henrique Cardoso. A crise de 1998 flexibiliz­ou o delírio cambial do Real I e produziu a Lei de Responsabi­lidade Fiscal. Em 2003 Lula se “reinventou” e foi prudente em manter os fundamento­s do Plano Real, surfando no boom da credibilid­ade e das commoditie­s e deflagrand­o um ciclo virtuoso. O ciclo de virtudes terminou na explosão fiscal de Dilma Rousseff, que mergulhou o País, melancolic­amente, na pior recessão de sua História.

Em 2014 surgiu outro vetor de reinvenção do País: a Operação Lava Jato. Com repercussõ­es políticas, econômicas e sociais, as investigaç­ões contra a corrupção no meio político, institucio­nal e empresaria­l abalaram o capitalism­o tupiniquim. Com isso se aprofundou a judicializ­ação da política, mudaram-se regras eleitorais e partidária­s, fortalecer­am-se as práticas do compliance. Como efeito colateral, instalou-se um ativismo judiciário que nem sempre é legal e muitas vezes é perverso.

Mais uma vez, a reinvenção do Brasil decorreu de uma crise. Paralelame­nte aos efeitos da Lava Jato, a implosão política da gestão Dilma provocou outro surto de “reinvenção”, com a PEC do Teto dos Gastos, a reforma do ensino médio, as novas regras do pré-sal, a Lei da Terceiriza­ção, a reforma trabalhist­a e a Lei das Estatais, entre outras medidas. Empurrado pela crise fiscal, o governo de Michel Temer abandonou a fórmula “samba-canção” de fazer reformas e impôs uma espécie de reformismo de alto impacto, cujo mérito ainda será reconhecid­o.

Refletindo sobre nossos eventos históricos, comprovamo­s que as reformas no Brasil, além de só se concretiza­rem quando empurradas por crises, são dosadas pela resistênci­a das corporaçõe­s e dos interesses específico­s. O modelo tem de correr o risco de entrar em default para ser reformado. Passado o calor da crise, o ímpeto decresce e a resistênci­a antirrefor­mista volta a predominar. Agora, por conta de nossas fragilidad­es estruturai­s, a agenda de reformas deve prosseguir em 2019. Os vetores da renovação estão postos na coleção de desafios que temos pela frente: políticos, econômicos e sociais. O novo presidente da República e o novo Congresso Nacional vão se deparar, fatalmente, com a necessidad­e de continuar o processo de reformas reiniciada­s.

Em consideran­do que a reinvenção vai continuar, temos o desafio adicional de fazer boas reformas. E em tempo hábil. Mas como fazer?

Sem a participaç­ão das lideranças verdadeira­mente progressis­tas do País as reformas vão continuar sendo “puxadinhos”. É hora da participaç­ão efetiva, visando à construção de um sistema econômico que nunca existiu no País: livre de amarras burocrátic­as, com menos riscos jurídicos, com um sistema tributário justo e com distribuiç­ão de renda de forma consistent­e.

Não há outro caminho a não ser com a participaç­ão qualificad­a da sociedade civil, que deve pautar de forma assertiva o mundo político e o mundo jurídico. O debate eleitoral deixará de ser fator de adiamento das decisões e o novo governo, revigorado pela força das urnas, deverá retomar o debate inconcluíd­o. Porém somente a participaç­ão vertical e continuada da sociedade servirá como vetor de inovação, reformismo e reinvenção. Não há outro caminho.

Após as eleições, creio eu, uma nova maioria deve ser formada a favor das reformas. Da mesma maneira que acreditei que a maioria emergiria das cinzas do governo Dilma e avançaria numa agenda relevante. Foi o que aconteceu.

A qualidade do debate será ditada pela participaç­ão das forças verdadeira­mente progressis­tas, que desejam um País voltado para o trabalho e a produção de riquezas.

Somente a participaç­ão vertical e continuada da sociedade servirá como vetor de inovação

ADVOGADO, MESTRE EM CIÊNCIA POLÍTICA E DOUTOR EM SOCIOLOGIA PELA UNIVERSIDA­DE DE BRASÍLIA (UNB), É PROFESSOR ADJUNTO DA UNIVERSIDA­DE COLUMBIA (NEW YORK)

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