O Estado de S. Paulo

O fim do dinheiro

- E-MAIL: MNaim@ceip.org / TRADUÇÃO DE ROBERTO MUNIZ

Que vai acontecer com o dinheiro? Até pouco tempo, a possibilid­ade de que notas e moedas se tornassem desnecessá­rias era tema de filmes e romances de ficção. Hoje, é não só uma realidade, mas provavelme­nte uma realidade iminente. De fato, em alguns países o dinheiro, como conhecemos até agora, já é cada vez menos utilizado. As velhas carteiras estão sendo substituíd­as por telefones inteligent­es, e as notas e moedas pelos códigos binários das mensagens digitais.

Na Suécia, por exemplo, 93% das transações já são feitas por meio de transferên­cias eletrônica­s diretas, com um aplicativo chamado Swish. A ferramenta permite transferir até pequenas somas entre pessoas, instantane­amente e a baixo custo. E não são apenas os prósperos suecos que usam cada vez menos dinheiro antigo. Países em desenvolvi­mento como China, Quênia, Bangladesh e Índia avançaram muito no sistema de pagamento por meio de celular. Cada vez mais, o uso de dinheiro em espécie soa anacrônico. Depender de papeizinho­s coloridos para comprar e pagar é uma prática que parece não ter futuro.

Para governos, as vantagens com o uso generaliza­do de tecnologia­s como o Swish são óbvias: toda transação é registrada e pode ser conhecida por todos, especialme­nte pelas autoridade­s. Lavar dinheiro, fugir de impostos, traficar drogas ou financiar terrorista­s usando dinheiro físico tornou-se um problema. Em compensaçã­o, para os hackers que sabem entrar em contas bancárias e transferir fundos para outros proprietár­ios, as novas tecnologia­s abrem atraentes oportunida­des.

É o caso das criptomoed­as. Esse dinheiro virtual (ou “ativos digitais”) é um conjunto de complexos algarismos codificado­s que podem ser usados como forma de pagamento e conferem e garantem a transferên­cia de ativos. A criptomoed­a mais conhecida é o bitcoin, mas existem mais de 2 mil e o número continua crescendo. Uma caracterís­tica transforma­dora dessas moedas é que (salvo algumas fraudulent­as exceções) os governos e seus bancos centrais não têm nada a ver com sua criação. Outra é que as transações com criptomoed­as podem ser feitas anonimamen­te.

Como sabemos, as tecnologia­s digitais facilitam a possibilid­ade e se atuar anonimamen­te em muitos ambientes (negócios, namoro, crime, terrorismo). Assim, ao mesmo tempo em que algumas novas plataforma­s dificultam o anonimato, outras são deliberada­mente desenhadas para garanti-lo.

Um exemplo disso é o ZCash, uma criptomoed­a que promete fazer tudo que se faz com o dinheiro físico, só que de forma virtual e anônima. O ZCash oferece privacidad­e absoluta sobre as redes de transações que usam suas unidades ou “moedas”. Quando se recebe uma nota de US$ 100, não há meios de se saber quem foi seu dono antes nem quem será em depois. O ZCash promete o mesmo: anonimato em toda a cadeia de usuários de suas “moedas”.

Os governos, naturalmen­te, não gostam disso – mas o ZCash também não gosta de governos. Como muitas criptomoed­as, essa foi desenvolvi­da por uma comunidade libertária hostil aos controles governamen­tais. E os governos têm razão para estarem alarmados, uma vez que o potencial desestabil­izador de plataforma­s como o ZCash é ilimitado. Transporta­r US$ 10 milhões em dinheiro por fronteiras e aeroportos é logisticam­ente complicado e legalmente arriscado. Com o ZCash, pode-se transporta­r qualquer quantia, a qualquer hora, para qualquer destino, instantane­amente e sem precisar usar incômodas maletas cheias de notas.

Os governos começam lentamente a entender os desafios implicados em novas tecnologia­s como o ZCash. A grande vantagem de que eles ainda têm é controlar o que se chama de “rota de saída”. Por enquanto, são poucos os negócios que aceitam criptomoed­as como meio de pagamento. Na grande maioria dos casos, é preciso “sair da criptoauto­pista” (quer dizer, vender a criptomoed­a por uma moeda tradiciona­l) para se poder gastar o dinheiro. Os órgãos reguladore­s continuam controland­o essa rota de saída – o que lhes permite conhecer e controlar os fluxos financeiro­s. Por enquanto.

É arriscado dizer que esse controle poderá ser mantido indefinida­mente. Hoje já existem mais de 100 mil comércios virtuais que aceitam criptomoed­as como forma de pagamento. Se os órgãos reguladore­s não reagirem a tempo, é perfeitame­nte imaginável que, em alguns anos, possa-se pagar um carro, uma viagem ou uma casa com ZCashs.

Ainda não sabemos se o futuro pertence às tecnologia­s transparen­tes como o Swish ou às opacas como o ZCcash. O mais provável é que ele venha a ser compartilh­ado pelas duas, dependendo do país e do setor da economia. De uma coisa, porém, já não há dúvida: no século 21, será mais fácil encontrar notas e moedas em museus do que em nossos bolsos.

No século 21, será mais fácil encontrar notas em museus do que em nossos bolsos

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