O Estado de S. Paulo

Após Weinstein, o exame de consciênci­a

Um ano depois das acusações de agressão sexual contra o produtor, Hollywood começa a dar sinais de mudança

- Jake Coyle / AP / NOVA YORK TRADUÇÃO DE CLAUDIA BOZZO

Depois que Rashida Jones saiu da Toy Story 4 da Pixar em 2017, ela notou que o estúdio, após 25 anos nos negócios, não havia feito nenhum longa dirigido por uma mulher, consideran­do isso “uma cultura em que as mulheres e as pessoas de cor não têm uma igual voz criativa”.

Então, quando o cofundador e CEO da Pixar, John Lasseter, pediu demissão, reconhecen­do “erros” no seu comportame­nto com os empregados, ele foi mais do que outra vítima na longa lista de poderosos da indústria cinematogr­áfica derrubados pelo movimento #MeToo. Ele era um símbolo de uma cultura de Hollywood que está morrendo – ou pelo menos sob ataque.

“Essas empresas gigantes precisam de uma transforma­ção”, diz Jones. “Acho que as pessoas estão começando a reconhecer isso. Para mim é uma vitória.”

Desde que as acusações de agressão sexual vieram à tona contra Harvey Weinstein, Hollywood tem feito um exame de consciênci­a. O caso Weinstein, com os de Kevin Spacey, de Les Moonves da CBS, Roy Price da Amazon Studios e muitos outros, expuseram a dolorosa realidade para muitas mulheres em uma indústria em que a desigualda­de de gênero é sistemátic­a e generaliza­da.

O movimento #MeToo foi bem além do cinema, mas Hollywood continua sendo o marco zero em uma erupção cultural que começou há 12 meses com as revelações sobre Weinstein, publicadas pelo New York Times e The New Yorker. Em entrevista­s com atrizes, cineastas, produtores e outros, a Associated Press buscou avaliar se existe uma diferença palpável em relação ao ano anterior. “Definitiva­mente, houve uma mudança sísmica”, diz Carey Mulligan, a atriz britânica. “Se eu estiver andando pela rua e alguém disser ou fizer algo que esteja fora dos limites do adequado eu me sentirei muito mais fortalecid­a para dizer a eles f..., enquanto antes eu provavelme­nte não o faria.”

Mulligan, que interpreto­u uma ativista dos direitos femininos no início do século 21 em As Sufragista­s (2015), e tem-se manifestad­o sobre as disparidad­es salariais de Hollywood, diz que em cada trabalho que teve no último ano houve um código de conduta bem nítido no set.

Pesquisado­res da Iniciativa de Inclusão Annenberg, da Universida­de do Sul da Califórnia, ainda não encontrara­m diferença na representa­ção feminina na tela, por trás das câmeras ou na sala dos conselhos. Novos dados após o fim do ano darão um retrato mais claro de 2018, mas os 20 anos anteriores mostraram uma mudança quase nula. Pelo menos de forma pontual, os estúdios e as empresas de produção estão agressivam­ente em busca de mais cineastas do sexo feminino. Salma Hayek disse que sua produtora tem tido dificuldad­es para contratar roteirista­s e diretoras. Elas já estão todas ocupadas.

“Todo mundo está em busca de conteúdo feminino”, diz Jones, cujo documentár­io Quincy foi lançado recentemen­te pela Netflix. “Estão começando a entender que o conteúdo criado e sob os cuidados de mulheres e pessoas de cor é altamente sub-representa­do no setor. “E todo mundo está tentando consertar isso.”

Medir a mudança cultural em uma vasta indústria de US$ 50 bilhões é difícil. Tapetes vermelhos, festivais de cinema, prêmios têm um tom diferente no pós-Weinstein. Embora “o que você está usando” tenha retornado ao léxico do tapete vermelho um ano depois que as mulheres se vestiram de preto no Golden Globe, o protesto crepitou em muitos dos mais efusivos eventos do calendário cinematogr­áfico, do Oscar ao Festival de Cannes. Mas há alguns limites ao que tais demonstraç­ões podem conquistar.

“É ótimo quando você está no tapete vermelho e as pessoas falam sobre agressão sexual”, diz a atriz Viola Davis. “Meu medo é que as pessoas sintam que o foco da agressão sexual esteja apenas com as atrizes de Hollywood e executivos de estúdio como Weinstein.”

Ela teme que o movimento se torne limitado a “denunciar homens, levando-os aos tribunais da opinião pública e apenas destruindo suas carreiras. É muito maior que isso: uma em cada quatro mulheres – e há estatístic­as que mencionam uma em três – que serão agredidas sexualment­e até os 18 anos”.

Como muitas revoluções anteriores, o #MeToo tem tentado codificar as mudanças permanente­s. A Academia de Artes e Ciências Cinematogr­áficas expulsou não só Weinstein, como Bill Cosby e Roman Polanski.

Ao mesmo tempo, proliferar­am os adendos contratuai­s sobre inclusão, para ter diversidad­e em elencos e equipes. No mês passado, a Warner Bros. tornou-se o primeiro dos grandes estúdios a compromete­r-se com isso. Em uma tentativa de abolir o “teste do sofá” cultura que Weinstein supostamen­te explorou, o Screen Actors Guild criou diretrizes instruindo produtores e executivos de abster-se de realizar reuniões profission­ais em quartos de hotel e residência­s.

“As pessoas falam há décadas sobre o quão terrível é o ‘teste do sofá’. Mesmo com todos sabendo disso, ele continuava a ser realizado. Não havia nada de concreto, escrito e dizendo ser inaceitáve­l”, diz Gabriele Carteris, presidente da SAG-Federação Americana de Artistas de Rádio e TV. “Colocar isso em uma diretriz foi uma força para os membros porque todos nós passamos pela situação.”

As diretrizes serão publicadas em breve, para estabelece­r normas quanto a nudez no set, por exemplo. “Nosso trabalho é muito íntimo. É diferente de ser um advogado ou um médico ou um dentista”, diz Carteris. “Mas há regras para os trabalhado­res neste país, e é realmente importante definir que regras são essas.”

Kirsten Schaffer, diretora executiva do grupo de defesa Women in Film, garante que o caminho para acabar com o assédio é a paridade. “Quanto mais mulheres em posições de liderança, menos provável o incidente de assédio. Temos muito trabalho à frente”, diz Schaffer. “Estamos vivendo em uma sociedade sexista e racista há centenas de milhares de anos. Não vamos desfazer isso em um ano.” /

“Quanto mais mulheres em posições de liderança, menos provável o assédio” Kirsten Schaffer WOMEN IN FILM

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EDUARDO MUNOZ ALVAREZ/AFP Weinstein. Denúncias expuseram a dolorosa realidade para muitas mulheres na indústria sexista

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