O Estado de S. Paulo

Dias de espanto

- •✽ ALBERTO AGGIO ✽ HISTORIADO­R, É PROFESSOR TITULAR DA UNESP

Aos homens é facultada, sob determinad­as circunstân­cias, a escolha de como viver e, surpreende­ntemente, de experiment­ar também formas de como morrer. Mais precisamen­te, de como morrer num sentido especulati­vo resultante de escolhas no transcurso da vida.

No final da década de 90 do século passado, o antropólog­o mexicano Roger Bartra escreveu um pequeno artigo que toca nesse tema. A partir do contexto latino-americano, Bartra sugere quatro formas de experiment­ar a morte intelectua­l. A primeira é buscar a fama a qualquer custo, num campo específico de atuação ou na mídia. A segunda é tornar-se um especialis­ta e conselheir­o profission­al. A terceira é o que ele chama de “morte mercantil”, uma opção assumida pelos escritores dos best-sellers do momento. Em todas se verifica a presença do vírus democrátic­o (ou a massificaç­ão da cultura) na causa mortis. Por fim, a morte lenta, que ataca os intelectua­is de esquerda que perderam seus referencia­is depois do colapso do “comunismo histórico”. Eles continuam sua pregação utópica, mas demarcada por um pragmatism­o cada vez mais explícito. Sem condescend­ência, Bartra termina o artigo brincando com os leitores a respeito da “sua morte intelectua­l”. Diz ele: “Eu já escolhi a minha... Mas não direi qual é!”.

Evidenteme­nte, existem outras formas de vivenciar a morte intelectua­l. Há de tudo, desde a voz solitária do tribuno republican­o pregando a refundação do Estado até os velhos líderes estudantis que se tornam gourmets famosos e apreciam viajar pelo mundo. Embora no campo da esquerda quase todos os intelectua­is vivenciem, de alguma maneira, essa experiênci­a, há situações drásticas como, por exemplo, a de Fernando Haddad, que decidiu experiment­ar a sua morte intelectua­l de maneira explícita e em praça pública quando assumiu, na atual campanha eleitoral, o papel de fantoche de Lula, preso em Curitiba por corrupção e com mais processos a serem julgados de gravidade similar à daquele que o condenou.

Em nosso tempo, não só os intelectua­is experiment­am a diversidad­e de formas de se aproximar ou consumar a “sua morte”. Hoje sabemos, pelo livro de Steven Levitsky e Daniel Ziblatt Como as Democracia­s Morrem (Zahar, 2018), que também as democracia­s morrem não apenas por golpes de força, como antigament­e. Embora as críticas feitas ao livro por Marcus André Melo em artigos recentes mereçam atenta leitura, especialme­nte sua crítica a respeito do desconheci­mento da situação brasileira pelos autores, notadament­e do papel desestabil­izador da democracia promovido pelo PT.

Acontece que, ainda não estando consumada a sua morte, há atores, personalid­ades e mesmo partidos que começam a flertar vivamente com a experiênci­a da morte política. A recente campanha eleitoral e seus resultados exibiram essa aproximaçã­o. O Brasil foi revolvido de cima a baixo. O resultado do primeiro turno não deixa dúvidas: acabaram-se os pactos que foram construído­s durante a resistênci­a ao regime ditatorial e mesmo os que foram estabeleci­dos com a democratiz­ação. Não há dúvida que os alicerces da chamada Constituiç­ão cidadã estão sendo atacados sem pena. A lúcida orientação de composição de frentes e alianças políticas articulada­s em torno do centro político fracassou e isso denota o fim de uma era, sem que saibamos precisamen­te se está a nascer algo minimament­e próximo do que foi a nossa experiênci­a democrátic­a até aqui. A tentativa de construção de um centro político afirmativo e autônomo não se consumou por muitas razões, a começar pela desconfian­ça nessa ideia mesma. Não são poucos os que entendem, apesar de ser um argumento anacrônico, que o centro é apenas um território de passagem entre a direita e a esquerda, os polos substantiv­os da política organizada.

Os atores que ganharam corpo desde 2013 e especialme­nte em 2015/2016 resolveram sair à luz do dia e disputar um jogo que cada vez mais se foi definindo como de soma zero, no qual o vencedor leva tudo. Os extremos predominar­am, mas o eleitor não os sancionou em função de seus projetos para o País. O “fora isso” ou “fora aquilo” e o “nós contra eles” produziram um campo de hostilidad­es que fez vicejar a intolerânc­ia e o ódio. O rechaço aos políticos e aos partidos ganhou corações e mentes e instaurou o reino da antipolíti­ca em suas diferentes versões: das visões plebeias às neoliberai­s, todos passaram a buscar um mundo à sua imagem e semelhança. É a vitória da cultura narcísica e a derrota da cultura democrátic­a.

A chegada de dois polos excêntrico­s ao segundo turno não foi um raio em céu azul. O colapso do centro político acabou produzindo uma situação paradoxal: ele passa a ser o objeto de desejo dos dois extremos. O centro está morto. Viva o centro! Sua conquista será o que vai definir o segundo turno. E, no caso brasileiro, não apenas a futura governabil­idade, mas a possibilid­ade real de o País continuar a viver em democracia.

Mas não será nenhuma mudança cosmética que garantirá a conquista do centro político. Os dois polos têm obsessões indisfarçá­veis de visíveis inclinaçõe­s autoritári­as. À esquerda, não será a ancilosada noção de “frente única” (uma “frente de esquerda” ao velho estilo) o que vai angariar apoio em defesa da democracia. Haddad não passa de um construto enganoso de Lula. Não representa nem une os democratas brasileiro­s. Bolsonaro é a regressão aos anos pré-democracia e uma ameaça iliberal evidente.

Entre a catástrofe e o desastre, nossa frágil democracia terá de resistir para seguir respirando e ganhar sobrevida. É um momento difícil, no qual somente nos serve o “pessimismo da razão”. E o mais trágico é que não há nenhum locus facilmente reconhecív­el que vocalize algum “otimismo da vontade”. Atônitos, os brasileiro­s seguem os sinais de alerta buscando evitar, de alguma maneira, uma aproximaçã­o com a morte da democracia.

Entre a catástrofe e o desastre, nossa frágil democracia terá de resistir para sobreviver

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