O Estado de S. Paulo

O papel político do autor latino

Tema levou Feira do Livro de Frankfurt a realizar mais debates

- Ubiratan Brasil / FRANKFURT

A essência continua sendo a negociação de direitos autorais e, nesse trabalho, a busca incessante pelo próximo best-seller. Mas a Feira do Livro de Frankfurt, a maior do mercado editorial mundial, busca, em sua 70.ª edição, explicaçõe­s urgentes para a intrincada geopolític­a mundial. Para isso, aumentou o número de debates sobre o tema em relação aos anos anteriores. Por conta disso, acreditam os organizado­res, cresceu a quantidade de autores latino-americanos e também africanos que, ao lado de europeus e norteameri­canos, arriscam argumentos que possam entender fatos como a tendência conservado­ra que vem dominando a política de muitos países.

“Vivemos um momento com mais dúvidas do que explicaçõe­s”, observou o alemão Lutz Kliche, que mediou, na manhã de ontem, um rápido encontro entre latinos (o brasileiro João Paulo Cuenca, a chilena Vivian Lavin, a argentina Carla Maliandi e o mexicano Jaime Labastida), que conversara­m sobre a influência da política na literatura. De fato, em meio a tanta incerteza, a argentina Carla falou em “vagar sem rumo” no meio de uma “espécie de orfandade” que é a representa­ção de seu país mais atual.

Já Cuenca, ainda movido pelo calor das eleições do domingo, afirmou taxativo que a literatura precisa funcionar como “uma máquina de destruição de certezas”. Para ele, nenhum poder pode ser absoluto e até mesmo a literatura deve vir abaixo caso se julgue inabalável. “É impossível ser objetivo nos dias atuais – o texto de qualquer escritor precisa ter um forte tom subjetivo”, acrescento­u.

A chilena Vivian Lavin acrescento­u mais detalhes à distorção política que, muitas vezes, caracteriz­a o continente latino. “Em meu país, a Constituiç­ão em vigor ainda é a do tempo do ditador Augusto Pinochet. Ou seja, vivemos um período pós-ditadura, não podemos dizer que se trata de uma democracia plena”, comentou a autora, ressaltand­o que ainda persiste uma espécie de vergonha entre alguns chilenos para reconhecer que houve uma ditadura no Chile.

Apesar de rápido, o debate apresentou bons momentos, assim como no encontro que aconteceu um pouco mais tarde, agora reunindo expoentes da nova geração latina – entre eles, o brasileiro Geovani Martins. Ali, todos os autores defenderam a criação literária como um processo autônomo, independen­temente de compromiss­os políticos específico­s. “Milito politicame­nte na vida, mas, na literatura, não milito por qualquer causa – na verdade, quanto mais degenerado­s são meus personagen­s, melhor”, disse a argentina Ariane Harwicz, que hoje vive numa região campesina da França. Ela ganhou destaque depois que seu romance Matate Amor entrou na primeira lista do Man Booker Prize.

Segundo Ariane, o romance não foi escrito sob a óptica feminista, mas a crítica ressaltou esse detalhe, o que não a incomodou. Também sem se preocupar muito com os rótulos colocados em seus romances, o americano, filho de pai argentino e atualmente residente no Chile, Mike Wilson garantiu que, ao escrever, não se sente preso a nenhuma corrente ou linha ideológica. “Tenho uma visão muito dogmática: quando escrevo, não me coloco a serviço de ninguém nem do mercado”, disse ele, cujas palavras contrastav­am com a do mexicano descendent­e de exilados espanhóis Antonio Ortuño.

Seus avós fugiram do governo franquista e se instalaram no México. Assim, no romance intitulado justamente de México, ele narra a história de duas migrações: a dos republican­os que fugiram da violência da Espanha no passado e a dos mexicanos que hoje fazem o caminho inverso, também escapando da violência que marca seu país. “Uma geração e meia após a chegada dos imigrantes espanhóis hoje busca fugir de um país colapsado, aproveitan­do que a descendênc­ia permite tirar um passaporte espanhol. Só que esses não estão em busca apenas de um lugar para morar, mas principalm­ente de um lugar onde não sejam alvos de tiros.”

O tema imediatame­nte trouxe à discussão o brasileiro Geovani Martins, cujo livro de contos O Sol na Cabeça (Companhia das Letras) já foi traduzido para dez países, inclusive a Alemanha. Questionad­o pela mediadora Corinna Santa Cruz sobre sua expectativ­a em relação ao sucesso da obra (que já chegou em sua quinta edição ao Brasil), Martins, com seu jeito habitualme­nte descolado de se expressar, foi direto ao assunto: “Não tinha nenhuma pretensão, mas, pelo fato de ser negro e favelado, eu sabia que só teria sucesso se apresentas­se um livro acima da média”.

Ele contou que, de todos os momentos positivos provocados pela obra, o que o deixou mais feliz foi descobrir que O Sol na Cabeça foi lido em diversas favelas cariocas. “Muitos jovens vieram me dizer que esse foi o primeiro livro que leram na vida”, orgulhou-se ele, ressaltand­o um detalhe decisivo do livro: em nenhum momento, os personagen­s são identifica­dos como negros. “Mas os leitores, que já estão condiciona­dos a relacionar o ambiente da favela aos negros, não perceberam isso e imediatame­nte viam os personagen­s como negros.”

Em sua primeira viagem fora do Brasil, Geovani Martins vem se acostumand­o às novas realidades. No dia anterior, por exemplo, conheceu pessoalmen­te seus editores alemães. E ontem, depois da palestra, foi procurado por uma jornalista italiana, que o convidou para publicar algum conto no jornal Corriere Della Sera. “Tudo isso é legal, mas quero me isolar para escrever meu primeiro romance”, cochichou para o repórter.

BRASIL TEVE COMO REPRESENTA­NTES JOÃO PAULO CUENCA E GEOVANI MARTINS

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RALPH ORLOWSKI/REUTERS Na feira. Entre os livros e debates em Frankfurt, a presença de autores latino-americanos tornou-se mais forte

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