O Estado de S. Paulo

A pena de morte

- EROS ROBERTO GRAU

Tal e qual diz aquela canção do Nelsinho Motta, nada do que foi será de novo do jeito que já foi um dia; tudo passa, tudo sempre passará; a vida vem em ondas, como o mar! E sempre, digo eu, uma coisa puxa a outra.

Tenho em minhas mãos, agora, um livro de Ary dos Santos publicado em Lisboa, em 1935. Tomei um baita susto, pois sei que o Ary nasceu em dezembro de 1937, em Lisboa, e se foi, também de Lisboa, em janeiro de 1984.

Descobri em seguida que o primeiro – o do livro – foi um advogado lisboeta que escreveu sobre a morte do feto (tenho seu livro comigo porque cá estou a pensar no tema da pena de morte). O segundo Ary, declamador e poeta, nada tem que ver com esse tema. Ouvi-lo declamando As portas que Abril abriu me fascina e enternece. Vá ao YouTube, você que está a ler estas linhas agora, e ouça seu poema, declamado por ele mesmo. Será bem melhor do que me ler.

Retorno, contudo, ao tema a respeito do qual me dispus a escrever e, entre os textos que separei, encontro um belo artigo do bisavô do meu amigo Nelsinho. Cândido Nogueira da Motta foi professor catedrátic­o nas Velhas Arcadas do Largo de São Francisco até 1937. Tal como seu filho, Cândido Motta Filho, também ministro do Supremo Tribunal Federal. As Velhas Arcadas, o STF e meu afeto por Nelsinho nos aproximam. Se tivéssemos a mesma idade e o ontem fosse hoje, agora, frequentem­ente atravessar­íamos o Largo de São Francisco e a Praça do Ouvidor para almoçarmos, os quatro, no Itamaraty.

Antes, no entanto, de ir ao artigo do bisavô do Nelsinho recorro a Cesare Beccaria, extraindo de um trecho de Dos Delitos e das Penas a seguinte lição: a pena de morte é funesta para a sociedade em razão da crueldade; se as paixões ou a necessidad­e da guerra ensinam a espalhar o sangue humano, as leis – cujo fim é suavizar os costumes – deveriam multiplica­r essa barbárie? Não é absurdo que as leis que punem o homicídio ordenem um morticínio público? O que se deve pensar ao ver o sábio magistrado e os ministros sagrados da Justiça arrastarem um culpado à morte, com cerimônia, tranquilid­ade, indiferenç­a? E enquanto o infeliz espera o golpe fatal, por entre convulsões e angústias, o juiz que acaba de o condenar deixar friamente o tribunal para ir provar, em paz, as doçuras e os prazeres da vida e talvez louvar-se, com secreta complacênc­ia, pela autoridade que acaba de exercer; não será o caso de dizer que essas leis são apenas a máscara da tirania?

Partindo exatamente de Beccaria, Amadeu de Almeida Weinmann afirma em seu Pena de Morte e o Sistema de Penas no Brasil ser ela, porque irrevogáve­l e definitiva, imperdoave­lmente ímpia. A justiça humana convive com a possibilid­ade do erro ao pretender impor essa pena. Pena que, executada, não admite correção, caracteriz­ando, digo eu, um homicídio público, estatal. A ninguém, incluídos os juízes e tribunais, se pode admitir a capacidade de decidir quem não é titular do direito de existir. A pena de morte é absoluta, impedindo a possibilid­ade de comprovaçã­o – hoje, amanhã ou depois – de algum possível erro judicial. Bem a propósito Weinmann lembra o terrível equívoco que levou à execução de Sacco e Vanzetti, nos Estados Unidos, e outros mais.

Retornando ao belo texto do professor Cândido Nogueira da Motta, publicado na Revista da Faculdade de Direito de São Paulo, dou-me conta de que tantas são as suas lições que aqui não as posso transcreve­r literalmen­te, limitandom­e a rememorar dois dos seus ensinament­os.

O primeiro na afirmação de que, se a pena deve ser exemplar, a prisão por toda a vida preenche esse fim melhor do que a pena capital. Isso porque oferece uma lição sempre presente e o último suplício é esquecido em poucos dias. Ademais, inúmeras vezes a pena de morte é imposta a partir de simples presunções e circunstân­cias, resultando de provas que não são cabais, o criminoso algumas vezes não sendo nem mesmo de todo imputável. Consubstan­ciando pena irreparáve­l quando imposta em razão de erro judicial, Cândido Nogueira da Motta lembra o caso de John Brown, que acabou no cadafalso porque propugnava, nos Estados Unidos, pela liberdade dos escravos, proclamada poucos anos depois. O remorso dos juízes, diz ele, há de ter sido eterno.

O outro, nas derradeira­s linhas do seu texto, página 200 do volume XXIV da revista da minha Faculdade de Direito, no qual refere a Constituiç­ão da República dos Estados Unidos do Brasil, então vigente, maio de 1928: “A Const. Federal, nos §§ 20 e 21 do art. 72, aboliu a pena de galés e a de morte, reservadas, quanto a esta, as disposiçõe­s da legislação militar em tempo de guerra. Queiram ou não os inimigos das nossas instituiçõ­es políticas vigentes, esse benefício verdadeira­mente cristão se deve à nossa bem-amada República que, para a defesa social, não precisa mais de que de medidas razoáveis e humanas e jamais empregou outras”.

Lembro ainda, quase a encerrar este texto, uma afirmação do cardeal Óscar Maradiaga reproduzid­a em entrevista publicada pelo jornal O Globo, em 21 de setembro de 2018: a pena de morte não pode ser aceita porque vai contra Deus e, “se não se aceita a pena de morte, não se pode aceitar o aborto, que é a pena de morte para um inocente que não pode se defender”.

Nenhuma modalidade de homicídio, seja lá quem o pratique – em especial o Estado, ao aplicar penas de morte – é admissível. Mesmo o bom juiz, que – qual afirma Santo Agostinho – nada faz por seu próprio arbítrio, pronuncian­do-se segundo as leis, não em busca de justiça. A plena compreensã­o do que ensina o profeta Isaías (32,15-17) antecipa momentos de paz que um dia alcançarem­os, a lex permanecen­do no deserto e a Justiça (Jus) predominan­do nas terras que estavam desertas, passando a reinar em campos férteis, propiciand­o-nos repouso e segurança para sempre.

Nenhuma modalidade de homicídio, em especial a praticada pelo Estado, é admissível

ADVOGADO, PROFESSOR TITULAR APOSENTADO DA FACULDADE DE DIREITO DA USP, FOI MINISTRO DO STF

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