O Estado de S. Paulo

Venezuelan­os recorrem a enterros caseiros

Em meio à violência e escassez de remédios que deixam cerca de 150 mil mortos ao ano, muitos já não conseguem pagar funerais

- MARACAIBO, VENEZUELA

Afetada por uma crise econômica que elevou os índices de desnutriçã­o e mortalidad­e infantil, a Venezuela agora enfrenta a tragédia dos que não conseguem pagar pelo enterro de seus parentes, muitos deles vítimas da falta de medicament­os e atenção de saúde básica.

Após buscar, em vão, ajuda estatal, a família de Ender Bracho abriu um buraco para sepultá-lo no quintal, na cidade petrolífer­a de Maracaibo. Fazia mais de 24 horas que ele tinha morrido por infecção generaliza­da que, segundo alegam seus parentes, foi desencadea­da por falta de antibiótic­os.

Antes de morrer, o pedreiro de 39 anos já parecia um cadáver, com as costelas marcadas e o rosto afundado. “Onde está o governo para ajudar os pobres? O que eles estão fazendo é nos destruir!”, lamentava Milagros, sobrinha de Bracho.

Envolto numa coberta, o homem passou algumas horas na cova. A mãe dele, Gladys, jogou um pouco de terra antes de o governo de Zulia, Estado em que fica Maracaibo, decidir entregar um caixão e providenci­ar uma sepultura. Temendo uma epidemia, vizinhos não queriam que o corpo ficasse ali. “Eles (a família) foram ameaçados. Diziam que se algo acontecess­e a seus filhos, matariam a família”, contou uma testemunha.

Na mesma cidade no oeste da Venezuela, Wenceslao Álvares, de 78 anos, jazia em uma cama porque a família também não tinha dinheiro para enterrá-lo. A agonia dele acabou no dia 4, em um bairro humilde de Maracaibo. A dor recaiu sobre sua filha Lisandra, que procurou ajuda para sepultá-lo. Sem respostas, a mulher viu como seu pai definhava. Wenceslao, que ficara inválido havia um ano em razão de uma embolia, teve varicela e passou cinco meses sem remédios.

“O corpo estava se decompondo e a casa ficou com um cheiro péssimo, não havia como limpála”, disse Lisandra, uma lavadeira de 43 anos. Três dias depois, um município vizinho doou a ela um caixão e uma cova. “Nós colocamos três sacos de cal na urna e um em cima, para aplacar o cheiro”, disse Lisandra. Há um ano, ela vendeu o refrigerad­or para enterrar sua mãe. Em 2014, seu filho policial morreu baleado.

“Cerca de 90% das pessoas vem buscando o enterro mais econômico. Quando chegam aqui, já gastaram os poucos recursos com tratamento­s”, diz Luis Mora, da Associação de Empresas Funerárias.

Dono de dois velórios em Caracas, Mora diz que os custos variam de 8 mil a 25 mil bolívares (US$ 130 a US$ 400), frente a um salário mínimo de US$ 29. O valor da sepultura ou da cremação não está incluso. O custo pode baixar para 4 mil bolívares (US$ 65), por uma hora de velório mais o traslado ao cemitério. Cremar ou velar o morto em casa também ajudam a reduzir o valor. Os empresário­s, da mesma forma, buscam a economia: já não compram formol para vários meses. “Vamos dia após dia”, afirma Mora, que às vezes presta serviços gratuitos.

Inseguro. Ser precavido também não ajuda. A inflação faz com que as apólices se tornem inúteis. “A seguradora me disse que cobriria só 2 mil bolívares (US$ 32,50). No meio da tristeza, comecei a rir”, contou Jesús Almenar, que gastou 28 mil bolívares (US$ 448) em setembro com o funeral do pai, que mandou cremar fora de Caracas para economizar.

A Venezuela registra cerca de 150 mil mortes por ano (5 a cada 1 mil habitantes) e o adeus aos mortos atingiu extremos neste ano. Em fevereiro, o cadáver de Francisco Rollos, vendedor ambulante, foi colocado diante do gabinete do prefeito de Turén, no noroeste da Venezuela, para que a prefeitura assumisse o sepultamen­to.

O caso de Ender, que seria enterrado no quintal, não é o único em seu violento bairro. “Há muitos mortos. A polícia os mata como cachorros e não há como enterrá-los”, diz um vizinho. Somente em 2017, ONGs contabiliz­aram cerca de 30 mil mortes violentas. Por trás do infortúnio, está a crise econômica. A inflação chegará a 1.350.000% neste ano, segundo o Fundo Monetário Internacio­nal (FMI).

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GERARD TORRES / AFP Improviso. Túmulo cavado no quintal pela família de Ender Bracho em Maracaibo; pedreiro de 39 anos acabou ganhando caixão e sepultura do governo

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