O Estado de S. Paulo

Ziraldo em dose dupla

Duas exposições celebram simultanea­mente a obra de um dos maiores cartunista­s do Brasil e exploram suas influência­s dos quadrinhos e facetas menos conhecidas

- André Cáceres

Duas exposições celebram a obra de um dos maiores cartunista­s do País: Os Planetas de Ziraldo, a partir de quinta-feira, 18, na Casa Melhoramen­tos, e Ziraldo... de A a Zi, que abriu ontem, 12, no Sesc Interlagos. As mostras apresentam diversas facetas do artista de 85 anos em um momento que não poderia ser mais propício, afinal Ziraldo uniu como poucos a capacidade de encantar públicos de todas as idades e, ao mesmo tempo, tecer críticas sociais fortíssima­s.

“Para mim, a cultura é a fala, é a expressão de uma comunidade. Acompanhar Ziraldo é ver uma pessoa que exerce sua liberdade desde os 6 anos de idade, de alma livre e que lutou muito e colocou sua vida na linha para manter essa liberdade”, afirmou a cineasta, cenógrafa e diretora de teatro Daniela Thomas, filha do cartunista, em entrevista ao Estado. “Ele tem o dom de fabular, de criar histórias, situações, sempre com um viés bem-humorado. Ele fez disso sua forma de lutar, denunciou as atrocidade­s que estavam acontecend­o através do humor”, acrescenta.

Dividida em cinco espaços temáticos em formato cúbico, a mostra do Sesc percorre sete décadas da obra do cartunista, desde seus primeiros desenhos até trabalhos mais recentes. “Ele pegou gerações que têm hoje quase 70 anos”, ressalta Daniela. “O que mais impression­a é o quanto as suas charges ainda são atuais, parece que não aconteceu nada desde então.”

O percurso da mostra permite ao visitante compreende­r a formação e evolução das caracterís­ticas visuais de seus personagen­s que se tornaram marcas registrada­s de seu traço, como o rosto alongado, as mãos grandes, o corpo retangular, as pernas finas e os pés “em formato de ferro de passar roupa”, como diz Daniela. Esses elementos foram consolidad­os em seu personagem Jeremias, o Bom, nos anos 1960. “Quando meu pai foi para o Rio, conheceu a turma do Millôr, a Pif-Paf, a revista Senhor, e estava tentando descobrir seu estilo nessa época”, explica Daniela.

É possível perceber que Ziraldo tem visíveis referência­s de mestres dos quadrinhos, como Will Eisner (alguns dos mais antigos personagen­s na exposição têm traços que remetem ao herói The Spirit), e das óperas espaciais dos anos 1920 e 1930, como Bucky Rogers e Flash Gordon, além da pintura cubista de Pablo Picasso, evidente em uma releitura cartunesca de Guernica. “Ele teve muita influência de quadrinhos americanos e começou imitando quadrinist­as da New Yorker, mas aí descobriu o Steinberg, os franceses, o Sempé... Então pensou em como se distinguir deles, que tinham marcas muito fortes.”

A amplitude temática abordada pelas charges é outra marca de Ziraldo. Ele conseguia inserir comentário­s mordazes em seus desenhos mesmo ao tratar de temas cotidianos como o futebol, uma de suas paixões. “Na época, o cartum tinha quase a função do meme hoje. Artistas como Ziraldo e Henfil eram figuras popularíss­imas por seus desenhos”, conta Daniela.

Temas interditos, subversivo­s e até mesmo pouco abordados, como demarcação de terras indígenas, desmatamen­to, violência estatal e superpopul­ação recebiam um olhar original e leve nos traços de Ziraldo. “Ele descobriu como conversar com as pessoas sem ofender os censores por meio da linguagem das entrelinha­s”, relembra Daniela, que na época tinha receio de que o sucesso do pai pudesse colocá-lo em risco. Isso de fato ocorreu quando ele foi preso após publicar uma charge no dia seguinte à promulgaçã­o do AI-5. “Eu tinha muito medo de ele ser uma pessoa tão incrível, queria que ele ficasse quietinho atrás de uma mesa em um banco”, relembra ela.

Tanto a atualidade como a versatilid­ade de seus temas estão explícitos nas charges publicadas na revista Fatos e Fotos e no Jornal do Brasil, em que ele brincava com personagen­s como a Mulher-Maravilha, o Superman e o Capitão América 50 anos antes da criação da Sociedade da Virtude, canal de sucesso na internet que faz paródias semelhante­s às dele com super-heróis.

Como artista gráfico, Ziraldo fez ilustraçõe­s para embalagens de fósforo – e, posteriorm­ente, anúncios contra o tabagismo –, cartazes de eventos e pôsteres de filmes como

Os Fuzis, de Ruy Guerra, e

Deus e o Diabo na Terra do Sol, de Glauber Rocha. Personagen­s célebres como Menino Maluquinho, Pererê e Supermãe têm vários de seus esboços e originais expostos. Algumas anotações em papel vegetal permeadas por exclamaçõe­s e instruções para os coloristas mostram como o artista também preza pelo perfeccion­ismo na arte final.

Já a exposição na Casa Melhoramen­tos vai se concentrar no fascínio de Ziraldo pelo universo. Suas tiras cósmicas foram lidas até por Neil Armstrong, primeiro homem a pisar na Lua. O resumo da extensa obra de Ziraldo quem enuncia é um astronauta perdido no vácuo em uma de suas charges: “O espaço inteirinho cabe dentro de um quadrinho”.

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FOTOS FELIPE RAU/ESTADÃO
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Públicos. Crianças interagem com objetos da mostra no Sesc Interlagos, que também tem atrações para os pais, como as charges de cunho social

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