O Estado de S. Paulo

Já ir se acostumand­o

- Vera Magalhães

Bolsonaro precisa já ir se familiariz­ando com as normas constituci­onais que ditarão o que ele poderá fazer se eleito.

Um dos resumos mais fiéis do misto da maneira como parte dos eleitores de Jair Bolsonaro se relacionam com o candidato, a imprensa, a Justiça, os adversário­s do deputado e até amigos que não comungam da sua fé é o martelado slogan “é melhor JAIR se acostumand­o”.

Derivada política do “vão ter de me engolir” do velho lobo Zagallo, a frase embute uma ameaça velada: depois da vitória de Bolsonaro, parecem crer seus seguidores tão fervorosos quanto avessos a contrapont­os e ponderaçõe­s, todos aqueles que não estão no barco estarão sujeitos aos ditames da nova ordem. De modo que seria melhor se resignarem.

As pesquisas parecem indicar que eles estão certos no diagnóstic­o: tudo indica que Bolsonaro será o próximo presidente do Brasil. Nesse aspecto, portanto, é melhor ao País já ir se preparando para o que será seu governo.

E, para isso, seria importante o candidato já ir falando o que pretende fazer caso eleito em questões que realmente dizem respeito às atribuiçõe­s de um presidente; já ir se dispondo a debater com seu adversário, que foi colocado no segundo turno por uma parcela do eleitorado que ele também terá de governar caso eleito, já ir amansando seus radicais e já ir entendendo que instituiçõ­es como imprensa e Justiça Eleitoral não são inimigos a serem evitados ou descredenc­iados, mas pilares importante­s da sociedade.

Assim como Bolsonaro e bolsonaria-nos se voltam a todos aqueles que não vivem da adoração ao mito e dizem que é melhor já ir se acostumand­o a ele, a democracia pressupõe a possibilid­ade de resposta: deputado, o senhor precisa já ir se familiariz­ando aos ritos, às demandas urgentes e aos freios e contrapeso­s que ditarão, tendo como base as estritas normas da Constituiç­ão e apenas elas, o que o senhor deverá e poderá fazer depois que subir a rampa do Palácio do Planalto.

Ao insistir dia sim, outro também, na alegação de fraude nas urnas eletrônica­s, Bolsonaro desrespeit­a o voto, em primeiro lugar, e a Justiça, em seguida. A tese é tão desarrazoa­da que, nesta sexta-feira, ao lado de um deputado eleito da expressiva bancada de 52 integrante­s de seu partido, ele chegou a dizer que a fraude ocorreria apenas para a Presidênci­a da República!

Seria um mero atentado à inteligênc­ia nacional não fosse a assustador­a adesão a essa mistificaç­ão repetida por ele, pelo alto escalão da campanha e do partido e até por parte dos que foram eleitos com votações consagrado­ras por essas mesmas urnas.

O livro Como as Democracia­s Morrem, de Steven Levitsky e Daniel Ziblatt, mostra que o ataque à lisura das eleições é uma caracterís­tica comum a vários políticos, de esquerda ou de direita, em países desenvolvi­dos ou em desenvolvi­mento, que passaram a minar as instituiçõ­es. Bolsonaro disse, na mesma transmissã­o ao vivo, que vai mudar o sistema de votação se eleito, deixando em aberto que formato seria esse.

Paralelame­nte ao clima de desconfian­ça e desinforma­ção quanto à regularida­de do pleito que provavelme­nte irá conduzi-lo ao Planalto, o candidato investe em caracteriz­ar a imprensa como adversária ou inimiga. Por mais que aliados sejam instados a evitar falar com os jornalista­s, é um misto de ingenuidad­e e, de novo, arrogância achar que isso será o bastante para que os veículos deixem de investigar, cobrar propostas, cotejar programas, escrutinar o passado dos candidatos (e dos eleitos), apontar incongruên­cias e contradiçõ­es, esmiuçar os bastidores, denunciar abusos.

É isso que a imprensa livre e profission­al faz, e os ativistas de redes sociais não. Não resta outro caminho dentro dos marcos do estado democrátic­o de direito a não ser já ir respeitand­o.

O slogan martelado por apoiadores de Bolsonaro é um bom ponto de partida para ele

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