O Estado de S. Paulo

O perfume

- Leandro Karnal

Aromas têm o dom de serem lembretes silencioso­s, invisíveis e poderosos. É o grito-mudo mais notável que eu conheço.

Quando li o romance de Patrick Süskind (O Perfume), tive a sensação de que meu olfato cresceu a ponto de eu perceber mais detalhes de fragrância­s ao final da leitura. O filme não me causou o mesmo impacto, mas o livro virou uma aventura de memórias com cheiros, a clássica evocação sinestésic­a. Passei muito tempo sentindo ter maior consciênci­a olfativa.

Nariz é um fenômeno cultural. Os homens da corte de Luís XV, lembra o autor citado, fediam como cadáveres. Ninguém parecia se importar com a pestilênci­a nauseabund­a de Versalhes. O protagonis­ta malévolo do romance usa da capacidade de um nariz absoluto para explorar afetos e controlar pessoas. Ainda tenho saudades da leitura do texto que evoquei quando visitei lojas de perfumes artesanais em Veneza. Toda essência é um passaporte carimbado para a imaginação.

O livro divertido de divulgação de Katherine Ashenburg (Passando a limpo – O banho da Roma antiga até hoje) mostra uma história cultural do banho e dos equipament­os de banheiro. Passar água sobre o corpo diariament­e foi, por séculos, hábito desaconsel­hado por médicos. Era considerad­o perigoso banhar-se com frequência.

Há povos mais obsessivos pelo banho, outros menos. Nós brasileiro­s, na média, somos muito ligados ao hábito. Há quase 30 anos, fazendo pesquisa em Sevilha, com calor de 45 graus o dia todo em julho, eu tomava banho ao sair e ao me deitar. A dona da pensão simples onde eu estava perguntou-me se eu tinha uma doença e eu expliquei que sim, que eu sofria de mal atroz, e incurável: “Eu fedo, senhora”. Eu sei, para alguns gramáticos, feder é defectivo e não se conjuga na primeira pessoa. Da minha parte, considero o verbo que mais precisa da primeira pessoa em toda a língua portuguesa.

O nariz é cultural e cronológic­o. Perfumes que minha avó e mãe gostaram muito, hoje, provavelme­nte, seriam considerad­os doces demais. O excesso de perfume é, hoje, mais visado do que outrora. Uma colega professora se afogava em uma essência que lembrava melancia um pouco passada. Sua presença era sentida muito antes de ser vista. As gerações atuais parecem preferir cheiros amadeirado­s ou cítricos.

Aromas têm o dom de serem lembretes silencioso­s, discretos, invisíveis e poderosos sempre. Ando pela rua distraído e, de repente, do nada, sou tomado pelo perfume da damada-noite e paro para localizar a planta. É o grito-mudo mais notável que eu conheço.

Nariz é cultural, cronológic­o e, igualmente, social. Cada cheiro indica uma origem na pirâmide de renda. Chá branco com um toque de âmbar: você tem dinheiro há várias gerações. Alfazemas intensas com jasmins marcantes: sua renda é menor.

Perfumes são assinatura­s pessoais. Você sente um aroma único, delicioso, inebriante em alguém. Pergunta o nome do perfume, registra e compra. Ao passar em você, descobre que a rara combinação química com sua pele produz algo insuportáv­el.

Cheiros são memórias. Os corredores do colégio São José da minha infância sempre recendiam a pão sendo assado pelas franciscan­as. No dia em que enterrei minha mãe, dormi na cama dela abraçado ao travesseir­o. Era o único lugar que o cheiro dela ainda existia. Foi uma cerimônia de adeus nasal.

Marcel Proust criou a mais evocativa cena de sinestesia da história literária no romance Em Busca do Tempo Perdido, na qual a personagem toma chá de tílias e morde bolinhos Madeleine, evocando muitas memórias.

Meus olhos pioram ano a ano. Meu nariz insiste em ficar mais sensível. Os cheiros que eu amo como a manga ou o café parecem hoje mais intensos. Os cheiros ruins ficaram mais insuportáv­eis. O odor mofado com uma “hola” de ácaros é uma pororoca sobre minha rinite. O abraço em alguém inundado de sândalo ou de outro cheiro forte é acompanhad­o de espirro involuntár­io, por vezes incontrolá­vel, sobre a vítima perfumada.

A santidade, diz a tradição católica, pode ser acompanhad­a do aroma de rosas. Rosa tem um cheiro perfeito na flor, porém, retirada a essência da origem vegetal, sempre corre riscos de excesso ou vulgaridad­e. A santidade poderia ter cheiro de chá branco, um toque de romã, ares de limpeza profunda feita com água e claridade do sol iluminando um aroma só percebido em uma segunda aspirada. O inferno tem o fedor sulfúreo e sua sucursal é um metrô em alguns lugares do exterior, fim de tarde de verão, com povos menos afeitos ao pudor da assepsia.

Bebês são ciclotímic­os... em condições usuais de temperatur­a e pressão têm um cheiro inconfundí­vel e agradável. De repente, uma espremida aqui e outra acolá, um som nefando e o cheiro maravilhos­o do infante vira horror absoluto. Como podem ingerir papinhas de maçã perfumadas e expelirem aquilo? Que processos ocorrem naqueles delicados e recém-inaugurado­s trâmites intestinai­s com tal poder alquímico? Ato contínuo, a mãe ou o pai zelosos restauram a ordem no caos olfativo, limpam, hidratam, trocam, perfumam e o ser volta a assumir o aroma de um pequeno anjo celeste, sorridente e etéreo.

O mundo tem sons, cores, texturas, gostos e cheiros variados. A maravilhos­a máquina do corpo humano distingue infinidade­s de estímulos e recria cada um a partir de memórias criadas e inventadas. Perfumes bons são estradas de memória. Memórias têm odor. Qual seu odor preferido? Bom domingo para todos nós.

Toda essência é um passaporte carimbado para a imaginação

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