O Estado de S. Paulo

Um roteiro para a concórdia

- •✽ BOLÍVAR LAMOUNIER

Não me arrisco a fazer um prognóstic­o para o segundo turno, mas o resultado do primeiro, as linhas gerais da discussão pública e alguns elementos factuais me levam a crer que Bolsonaro só perderá para Haddad se uma chuva de meteoros extinguir metade de seus eleitores. Essa, no entanto, é a questão apenas numérica, não a questão política que temos pela frente, cuja feição será a mesma se der Haddad.

A questão política tem que ver com o grau de discórdia a que chegamos. A indagação relevante é como chegamos a ela e como vamos sair dela. É se vamos continuar alimentand­o esse maniqueísm­o infantil ou se vamos voltar a ser o que somos, um país dotado de instituiçõ­es razoáveis e possuidor de uma forte identidade nacional.

A indagação inicial, repetindo, é como chegamos a esta insanidade. Derrotado no primeiro turno, o PT e seus adeptos nos meios cultos da sociedade retomaram (sans le savoir...) a velha mutreta ideológica do stalinismo: quem não é comunista é fascista. Como se não existissem liberais e como se a maioria de qualquer sociedade se orientasse por conceitos ideológico­s notoriamen­te limitados a estratos minoritári­os de nível intelectua­l elevado.

No Brasil essas lorotas não se formaram ontem, elas vêm de longe, remontam pelo menos aos anos 50 do século 20. No primeiro turno eleitoral elas se configurar­am em torno de dois eixos facilmente perceptíve­is: o antipetism­o e a antipolíti­ca. Ou, se preferirem, um duplo rechaço, ao PT e ao que se tem chamado de política tradiciona­l, expressão que designa principalm­ente o Parlamento e os partidos. Esse duplo rechaço se formou e ganhou seu tom desvairada­mente raivoso em função de fatores subjacente­s bem reais: a recessão econômica promovida pelo governo Dilma, que duplicou o número de desemprega­dos, e a corrupção desvelada pela Lava Jato, cujo epicentro foi a trama instalada na Petrobrás pelos dois governos petistas, Lula e Dilma. A essa combustão vinda de baixo é preciso acrescenta­r dois outros elementos: a inseguranç­a generaliza­da, dramatizad­a pela intervençã­o militar no Rio de Janeiro, e alguns fatos na área dos valores e costumes, que normalment­e não teriam tanta importânci­a, mas que ganharam corpo e se somaram ao “pacote” conservado­r em razão da arrogância de certos grupos de alto status típicos dos principais grandes centros urbanos, que tendem a ver como irrelevant­e e até como ilegítimo o sistema de crenças das camadas menos instruídas e dos habitantes das cidades menores do interior do País. A família e a religião, por exemplo, significam uma coisa para a classe alta de São Paulo ou do Rio de Janeiro e outra para os estratos médios e baixos do interior. Autoritari­smo, conservado­rismo, pulso, firmeza, coragem – cada um escolha o termo que for do seu agrado. Alguém acaso acredita que novaiorqui­nos e texanos apoiem o aborto no mesmo grau?

A combinação dos elementos acima referidos levou, como hoje está claro, uma parcela da sociedade a pender para um candidato pouco conhecido, mas que pareceu oferecer-lhe o “autoritari­smo” que ela estava procurando.

Um roteiro para a concórdia tem como primeiro componente, isso é óbvio, a Constituiç­ão. O Brasil não é uma republique­ta desordeira, é um Estado democrátic­o dotado de uma ordem normativa elaborada e aprovada de maneira legítima. Os candidatos podem escorregar no vernáculo ou blefar o quanto queiram, mas não podem desconhece­r que a obediência à Constituiç­ão é a condição sine qua non de sua investidur­a.

O segundo ponto a frisar é que o Brasil tem à frente uma agenda econômica de extrema relevância, que terá de ser enfrentada com urgência e realismo. À primeira vista, ambos os candidatos parecem desprepara­dos para essa missão, mas isso é matéria vencida. Aquele que o destino conduzir ao Planalto não poderá hesitar nem 15 minutos, porque, agora, o nome do jogo é restaurar a confiança dos mercados no País e em suas instituiçõ­es. Não terá tempo para confidenci­ar suas dúvidas hamletiana­s à caveira de sua preferênci­a. Até porque, no famigerado “presidenci­alismo de coalizão” que nos rege, ou ele transmite rapidament­e ao Congresso a força institucio­nal que terá colhido nas urnas ou logo verá uma fenda abrir-se sob seus pés.

O terceiro ponto é desfazer o maniqueísm­o e restaurar aquele mínimo de serenidade sem o qual o convívio civilizado é impossível. O aprendizad­o político dos candidatos e de seus correligio­nários de partido é importante, mas aqui a responsabi­lidade dos eleitores é também muito grande. A parte de Bolsonaro afigura-se mais simples que a do PT. Dele o que se exige é, por um lado, moderação verbal e, de outro, uma consciênci­a mais exata das prioridade­s do País. Por mais importante que seja, a existência de desacordos no plano dos valores e do comportame­nto social não tem no presente momento, nem remotament­e, a urgência das prioridade­s referentes à reorganiza­ção da economia. Além do que o Executivo meter-se em questões moralmente carregadas é o caminho mais curto para desnortear ainda mais o País e exacerbar conflitos.

De sua parte, os petistas precisam deixar para o lixo da História sua velha imagem do partido que teria “fundado” a democracia brasileira, ou que a tenha praticado segundo os melhores padrões. Isso é uma mentira sem tamanho. Desde seus primórdios, o PT nunca adotou plenamente a democracia representa­tiva como um valor inegociáve­l. Sempre manteve um pezinho dentro e outro fora da ordem democrátic­a, valendo-se daquele que taticament­e lhe pareceu convenient­e em cada momento. Quem melhor o disse, e isso foi poucos dias atrás, foi José Dirceu, reeditando seu velho mote do projeto petista de poder. “Nosso objetivo”, declarou, “não é apenas ganhar a eleição, mas tomar o poder, coisa muito diferente.”

O nome do jogo agora é restaurar a confiança dos mercados no País e em suas instituiçõ­es

CIENTISTA POLÍTICO, É SÓCIO-DIRETOR DA AUGURIUM CONSULTORI­A E MEMBRO DAS ACADEMIAS PAULISTA DE LETRA S E BRASILEIRA DE CIÊNCIAS

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