O Estado de S. Paulo

‘Eu entreviste­i um santo’

- / J.M.M.

Era uma sexta-feira, 21 de março de 1980, véspera de minha partida de El Salvador, após uma semana de trabalho para uma série de reportagen­s sobre a violência no país. Guerrilhei­ros e militantes de esquerda lutavam contra uma junta militar, empenhados em derrubar uma ditadura de centro-direita, instalada cinco meses antes com apoio dos Estados Unidos. Marquei uma entrevista com d. Oscar Romero, arcebispo de San Salvador, a capital. Ele me recebeu em seu escritório no Seminário São José com mais dois jornalista­s, um americano, do jornal Dallas Times Herald, e um alemão, da agência de notícias DPA.

“O senhor não tem medo de morrer?”, perguntei ao arcebispo, quando ele se referiu à sua ação pastoral como mediador, que denunciava os extremismo­s de direita e de esquerda e lia, nas missas dominicais, a relação de mortos e de desapareci­dos da semana anterior. A igreja ficava sempre lotada. Havia ameaças contra ele, e eu queria saber se não temia ser assassinad­o.

“Em Salvador, todos temos medo. Eu prego a verdade e a justiça. Prego um Evangelho que é o Cristo, solução por caminhos de paz e de amor. Pode parecer ridículo pregar isso, mas é a solução. As soluções violentas não são dignas do homem nem são estáveis. A violência é uma espécie de operação cirúrgica para que o doente se cure logo. A Igreja admite a violência quando não há outro caminho, mas é preciso que seja apenas uma passagem. A insurreiçã­o como insurreiçã­o não tem sentido”, respondeu d. Oscar.

O arcebispo admitiu o risco de ser morto e, três dias depois, levou um tiro no peito, por volta das 18h30 da segunda-feira, 24 de março, enquanto celebrava a missa no Hospital da Providênci­a. Foi um único disparo, ninguém percebeu de onde saiu a bala. O assassino fugiu, após um ronco do motor de um carro que escapou em disparada.

A polícia atribuiu o crime a um atirador contratado pela extrema direita. A Comissão da Verdade da Organizaçã­o das Nações Unidas (ONU) apurou que o mandante do assassinat­o foi o major Roberto d’ Aubuisson, fundador da Alianza Republican­a Nacionalis­ta, em 1981.

No fim da entrevista ao

Estado, d. Oscar escreveu um cartão, pedindo-me para entregá-lo a d. Paulo Evaristo Arns, arcebispo de São Paulo. O cardeal revelou o conteúdo da mensagem em sua autobiogra­fia, Da Esperança à Utopia, publicada pela editora Sextante em 2001. O arcebispo de San Salvador dizia “que nunca esquecia o Brasil e as vítimas do governo ditatorial em suas preces e particular­mente em sua missa”. Os dois arcebispos eram amigos desde 1979, quando se conheceram durante a Conferênci­a do Episcopado Latino-Americano de Puebla, no México.

Tranquilo e afável.

D. Oscar Arnulfo Romero y Galdamez, então com 62 anos, nasceu em Ciudad Barrios, a 138 quilômetro­s de San Salvador. Era um homem tranquilo e afável que não se alterava nem quando falava da terrível situação de seu pequeno país, de 21.040 quilômetro­s quadrados e cerca de 4,5 milhões de habitantes em 1980. Combatia os extremismo­s, cuja luta custou mais de 75 mil mortos em 13 anos de guerra civil. A direita o odiava, a esquerda o olhava com desconfian­ça.

“Critiquei as organizaçõ­es populares (de esquerda), mas a reação do governo é desproporc­ional e as vítimas são mais numerosas nas esquerdas. A resposta às provocaçõe­s não deve ser somente militar. É preciso ouvir a voz que clama por justiça. Nos últimos dias, houve vítimas que não morreram em choques, mas em suas casas, após sequestros e torturas”, disse d. Oscar. “Dou números comprovado­s, temos documentos em nosso Socorro Jurídico: foram mais de 600 os mortos em janeiro e fevereiro”, acrescento­u.

Apesar de tudo, d. Oscar ainda confiava na Junta Revolucion­ária que tomou o poder em outubro de 1979, porque dela participav­a o Partido Democrata Cristão. Mantinha um diálogo com o governo para solução de problemas. “Chamam-me, às vezes, da Casa Presidenci­al, ou eu recorro, quando necessário, a membros do governo. Sou um mediador em favor do povo. Quando há ameaças de um massacre, por exemplo, entro em contato com o governo. Mas eles também costumam recorrer a mim.”

A fama de santidade, primeira condição para a abertura do processo de beatificaç­ão e canonizaçã­o, alastrou-se por El Salvador e outros países imediatame­nte. Chamado de mártir das Américas por ter dado a vida em defesa dos direitos dos pobres e perseguido­s, d. Oscar ganhou devotos pelo mundo afora. O papa João Paulo II rezou junto de seu túmulo, quando visitou San Salvador em março de 1983.

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Temor constante. ‘Em El Salvador, todos temos medo de morrer’, disse o arcebispo Oscar Romero, em entrevista ao ‘Estado’

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