O Estado de S. Paulo

Falando do jogo

- UGO GIORGETTI E-MAIL: UGOG@ESTADAO.COM

Não cheguei a ver Leônidas da Silva jogar. Mas cansei de vêlo como comentaris­ta de jogos que chegavam pela televisão. Nos anos 50, quando a TV Record transmitia, lá estava ele no meio tempo e no fim do jogo, microfone em punho, fazendo seus comentário­s. Como não o tinha visto jogar nada ligava, na minha imaginação, o antigo jogador, acrobático, malandro, polêmico, craque absoluto, à figura em gravata e paletó, bigode aparado, quase calvo, falando numa voz suave um português impecável.

O negro Leônidas da televisão se distinguia do negro Leônidas dos campos exatamente por isso: na TV, ao contrário dos campos, ele era o único negro, solitário, excepciona­l. Naqueles tempos nem jogadores brancos se transforma­vam em comentaris­tas. Poucos eram capazes de dar entrevista­s um pouco mais longas, quase todos fugiam dos microfones, pois sabiam de suas limitações de expressão.

Temiam perguntas capciosas que podiam colocá-los em situações desagradáv­eis. Dada a diferença de português entre imprensa e jogadores, havia receio de armadilhas porque, às vezes, os jogadores sequer compreendi­am inteiramen­te a pergunta do repórter. Não por serem burros, mas por falta de escolas e pobreza.

Leônidas, o Diamante Negro, era, portanto, um caso único. Trabalhava ao lado de gente como Paulo Planet Buarque, elegante nas maneiras, no aspecto e no linguajar, que caprichava nas frases e no raciocínio. O Diamante Negro não se constrangi­a absolutame­nte, e seus comentário­s eram igualmente corretos e elegantes. Onde ele aprendeu a se expressar de forma tão eficiente não tenho a menor ideia.

O fato é que lá ficou por anos e anos, o único jogador negro que fez carreira como comentaris­ta.

Leônidas da Silva saiu da minha vida da maneira usual. Um belo dia, quando dei por mim, não estava mais lá, nem a Record, com o futebol dos domingos, nem o velho bairro, muito menos os garotos que, como eu, acompanhav­am as transmissõ­es.

Vieram outros jogos, outras transmissõ­es e outros comentaris­tas. Com o decorrer do tempo comecei a notar que ex-jogadores se incorporav­am ao grupo de comentaris­tas, antes restrito a profission­ais da imprensa. Recentemen­te constatei uma verdadeira invasão de ex-jogadores na medida em que canais de televisão abriam suas portas para o esporte. O jogador famoso passou a ser uma atração a mais, e os que falam melhor se deram bem.

O nível de educação e convívio social dos jogadores tinha aumentado muito, de modo que, no meio dos atuais, Leônidas da Silva não seria uma exceção. A não ser num ponto: continuari­a a ser, se não o único, um dos únicos negros a fazer longa carreira entre os comentaris­tas. É incrível que, mais de 60 anos passados, Leônidas continue um raro exemplo de jogador negro a comentar por anos jogos do esporte mais popular, e mais negro, do País.

É verdade que o futebol não é mais tão popular, mas pelo menos no campo continua negro. Não vou fazer sociologia para explicar o fenômeno. Tanto mais porque a maioria das pessoas sabe perfeitame­nte as causas. Vou me limitar a dizer que, finalmente, acho que apareceu um negro, outro ex-grande jogador a nos ligar a Leônidas da Silva. Trata-se de Grafite, que iniciou faz pouco sua vida de comentaris­ta de futebol.

Negro até no nome, ainda atlético, recém-saído dos campos, depois de uma carreira de grande sucesso aqui e no exterior, de carisma provado onde quer que tenha passado. É só lembrar a recepção que lhe deu a torcida do Santa Cruz quando chegou no Recife, já em fim de careira, para jogar no Santinha. Na internet ainda deve haver imagens.

Grafite sabe o que falar e como falar. Um pouco hesitante no começo agora já o sinto completame­nte à vontade na nova vida. Vai dar certo. Depois de mais de 60 anos Leônidas da Silva tem um sucessor, para nossa vergonha e alegria.

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