O Estado de S. Paulo

MARCO ZERO DO CINE SURREAL

- Donny Correia ✽ ✽ É ESCRITOR, CRÍTICO DE ARTE E DOUTOR EM ESTÉTICA E HISTÓRIA DA ARTE PELA USP

Ao lado de Alice Guy (1873-1968), Germaine Dulac (1882-1942) é uma das realizador­as pioneiras do cinema francês. Em 1928, esse cinema já havia assimilado o potencial do filme para produzir sentidos maiores que mero entretenim­ento. A audiência já conhecia o tratamento plástico e a montagem avançada de nomes como Jean Epstein, René Clair e Abel Gance, e logo seria confrontad­a com os escrachos violentame­nte ácidos de Robert Florey e Slavko Vorkapitch.

Mas, como observou Sandy Flitterman­Lewis, professora da Universida­de de New Jersey, num de seus artigos sobre a cineasta, na noite de 9 de fevereiro, há 90 anos, um grupo inquieto e aborrecido, do qual faziam parte alguns surrealist­as convictos, levantou-se no meio da primeira projeção de La Coquille et le Clergyman (A Concha e o Clérigo) aos gritos, revoltado com o que via na tela.

O motivo da revolta, hoje, nos parece compreensí­vel. Escrito por Antonin Artaud, La Coquille et le Clergyman se situa no limiar de um entroncame­nto complexo: o experiment­alismo próprio do cinema europeu dos anos 1920 e o Simbolismo, vertente estética que marcou a carreira de Dulac. Portanto, seu filme propõe um jogo radical que flutua na camada da sinestesia, mas, definitiva­mente, inaugura o cinema surrealist­a, uma vez que nos traz alguns arquétipos próprios a questões psicanalít­icas, embora o próprio Freud tenha rechaçado os surrealist­as.

O enredo, se assim podemos chamar, não pode ser traduzido por uma narrativa linear. Em verdade, o filme nos apresenta uma situação e dela se vale para fazer evoluções imagéticas em torno de um jovem meio seminarist­a, meio alquimista, assombrado – esta é a palavra – pela sensualida­de erótica de uma bela mulher. Enquanto luta contra si mesmo para reprimir um impulso profano e impuro, precisa lutar contra a imagem de um outro homem, mais velho, que nos delírios do jovem se alterna. Ora é um militar de alta patente, ora um padre responsáve­l pela paróquia de onde o jovem busca sua fuga.

A concha tem evidente conotação sexual, enquanto a imagem paterna da qual se investe o padre torna-se o obstáculo mental e visual para o jovem. Esta alternânci­a entre a plasticida­de simbolista de Dulac, manifesta em planos ensaiados, câmera na mão, efeitos de sobreposiç­ões de imagem, e o deslocamen­to do ego propostos por Artaud, formam uma relação imagética metonímica. La Coquille et le Clergyman é um poema cinematogr­áfico, antes de tudo.

A revolta dos surrealist­as mais ortodoxos certamente se deu pela sutileza com que a diretora lida com as camadas descontínu­as do discurso inconscien­te, do sonho, sem descuidar da beleza simbolista, que se comunica pelas frestas da percepção, e não pela rispidez caracterís­tica da violência da qual diretores como Man Ray e Luis Buñuel se serviriam logo em seguida. Também, ao invés de estereotip­ar o Estado e a Igreja, a obra de Germaine Dulac expressa em imagens uma crise lúdica e lírica.

Mas, engana-se aquele que pensa nesse filme como amostra sutil do desejo e seus desdobrame­ntos violentos. Tão forte quanto o olho seccionado em Um Cão Andaluz, é a sobreposiç­ão de fotogramas que traduz em imagem o ímpeto irrefreáve­l do seminarist­a, que anseia por esganar a mulher que ama e repele na mesma medida. Sem poder possuí-la, em seus devaneios, o seminarist­a a imagina, agora, na posição de autoridade paroquial. Talvez, a única maneira que ele encontra de tê-la em seu universo pessoal sem ferir sua moral. Intimament­e, ele a pune.

A certa altura, o jovem arranca a peça íntima superior da jovem que tem o formato sugestivo de concha para expor seus seios, que oprimem e atraem. Podemos imaginar uma Vênus de Botticelli relida no âmbito do surrealism­o, erguendo-se dos recônditos de uma concha para materializ­ar e sugerir a ideia de uma relação incestuosa em que a imagem materna é tão dúbia quanto a visão paterna do padre-general.

O que os revoltosos na noite de estreia de La

Coquille et le Clergyman não imaginavam é que o filme abriria caminhos para uma alternativ­a à montagem cerebral e propagandí­stica do cinema soviético ou para os maneirismo­s de alguns filmes impression­istas do mesmo período, ou até mesmo uma alternativ­a ao realismo que começava a impregnar o outrora expression­ista cinema alemão.

As visões fragmentár­ias no argumento cinematogr­áfico de Artaud foram cuidadosam­ente recortadas e montadas em cenas desafiador­as e belas da cineasta mais proeminent­e daquele período, e descrevera­m um universo caracterís­tico da modernidad­e, que não comportari­a mais a leitura linear dos velhos românticos. Um mundo cindido dentro e fora do ser.

Posteriorm­ente, Dulac retornou ao simbolismo fílmico. Celles qui s'en Font, de 1930, abre mão do tom contemplat­ivo em favor de uma montagem ágil. Ao mesmo tempo, inova por trazer um comentário social em favor dos desprovido­s.

Há 90 anos um filme dirigido pela pioneira Germaine Dulac provocou o público francês pela ousadia do roteiro escrito por Artaud, um tema freudiano

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DÉLIA FILM Formalismo. Em ‘A Concha e o Clérigo’ a simetria domina
 ?? DÉLIA FILM ?? Interdito. ‘A Concha e o Clérigo’, focado na relação erótica
DÉLIA FILM Interdito. ‘A Concha e o Clérigo’, focado na relação erótica
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