O Estado de S. Paulo

CASAL UNIDO POR SANTOSDUMO­NT

- Luciana Garbin

Heitor era catarinens­e, tinha 22 anos e cursava o segundo ano de Engenharia na Universida­de do Brasil, no Rio. Hersília era cearense, tinha 27 e estudava bandolim e pintura, também na antiga Capital Federal. Os dois tinham se visto algumas vezes na missa, mas só conversara­m pela primeira vez em 15 de novembro de 1908, durante a Exposição Internacio­nal para Indústria e Comércio. Além de celebrar os cem anos da Abertura dos Portos do Brasil às Nações Amigas, o evento marcou o início do namoro do casal, que três meses depois virou noivado. E por que estamos falando de uma história de amor de 110 anos atrás? Por causa de dez bilhetes postais que passaram décadas guardados e agora recuperara­m sua história.

Eles me chamaram a atenção ao fazer a curadoria da Mostra Santos-Dumont na Coleção Brasiliana Itaú por dois motivos: os dez trazem fotos do dirigível número 6, com o qual Santos-Dumont deu a famosa volta na Torre Eiffel em 1901, e todos foram enviados no mesmo ano (1910), pelo mesmo remetente (Heitor), da mesma cidade (Rio de Janeiro), para a mesma destinatár­ia – Hersília Burlamaqui Freire, na Rua Formosa, 90, em Fortaleza.

Mandar bilhetes postais era uma febre no começo do século passado. E, no caso de Heitor e Hersília, o hábito mostrava que Santos-Dumont era tão popular que suas criações embalavam até namoros.

Mas teriam Heitor e Hersília tido mesmo uma história de amor? Aproveitei a inauguraçã­o da mostra no Ceará para tentar resgatar a história dos dois. Em Fortaleza, fui até a antiga Rua Formosa, hoje Barão do Rio Branco. O número 90 não existe mais. No lugar do casarão onde Hersília morou com pai, mãe, um irmão e 12 irmãs, há hoje uma loja de calçados. Fica num local do centro conhecido como “quarteirão do sucesso”. Ironicamen­te, porém, nenhum sucesso obtive por ali e voltei ao câmpus da Universida­de de Fortaleza (Unifor), onde a exposição de Santos-Dumont foi montada. Logo a história dos postais apaixonado­s começou a se espalhar. Depois de muita conversa, uma pista surgiu. O vice-reitor Randal Martins Pompeu se lembrava de um vizinho com o mesmo sobrenome de Hersília. Sua pesquisa foi rápida. Em 2 de agosto, data da abertura da mostra, ele avisou pelo telefone: “Encontrei uma descendent­e de Hersília. É uma sobrinha, que está com viagem marcada, mas prometeu vir à exposição ver os bilhetes”.

Minha primeira pergunta ao encontrar Constança Teles Távora foi:

– Dona Constança, quem foi Heitor?

– Meu tio, oras. Heitor Pereira Pinto.

– Então Heitor e Hersília ficaram juntos depois dos postais?

– Sim, eles se casaram, se mudaram para o Rio e tiveram três filhos. Era um homem muito apaixonado.

Dona Constança também me deu o telefone da jornalista Lenira Alcure, neta de Heitor e Hersília, que vive no Rio. E foi ela quem contou os seguintes detalhes sobre a história do casal.

Em dezembro de 1908, Hersília terminou os estudos e voltou para Fortaleza com uma medalha de ouro conquistad­a no curso de bandolim. Era então uma jovem inteligent­e e bastante independen­te para os padrões da época, em boa parte graças ao pai, Francisco, que achava que a formação das filhas só seria completa se, além de estudarem, elas também viajassem. Heitor permaneceu no Rio, cursando Engenharia – o diploma era uma exigência da família para o casamento. E, romântico, não economizou: passou a mandar pelo menos um postal por semana para a noiva. Sempre de temas variados. Até que em 1910 ele resolveu apelar para o dirigível de Santos-Dumont.

“Meu avô devia acompanhar entusiasma­do os feitos de Santos-Dumont, porque era apaixonado por tecnologia e pela França”, conta Lenira. Na época, o inventor era o brasileiro de maior prestígio internacio­nal. Embora com menor frequência, Hersília também correspond­ia, com postais pintados por ela mesma.

Depois que o diploma de Heitor saiu, os dois se casaram em Fortaleza, no dia 20 de janeiro de 1912. Mas logo foram viver no Rio, num casarão na Rua Haddock Lobo. No ano seguinte, nasceu o primogênit­o, Francisco, que fez carreira na Marinha. Depois, vieram Maria da Glória e Marta, que foi oficial de chancelari­a do Itamaraty. Nos três anos de noivado à distância, Heitor mandou, além de cartas, cerca de 200 cartões para Hersília.

Muito culto e rígido, ele trabalhou por quase duas décadas nos Correios e Telégrafos. Quando completou dez anos no serviço público, ganhou o direito de passar seis meses sabáticos. Pensou em viajar para Paris, mas os filhos estavam no colégio e ele resolveu esperar mais dez anos para ter direito a um ano de folga. Não chegou a completá-los. Perto de cumprir o prazo, descobriu uma tuberculos­e renal e acabou tendo de se aposentar precocemen­te aos 42 anos. No total, passou 16 anos de cama.

O casal era muito diferente. Heitor era sério, Hersília sorridente. Ele acordava cedo, ela era notívaga. Ele gostava de ficar com suas coleções e ela, de conversar. Heitor faleceu em 1947, aos 61 anos. Hersília morreu apenas em 1974, aos 93. Nunca mais se casou. Além dos três filhos, tiveram dez netos.

E como os postais foram parar na exposição de Santos-Dumont? Por intermédio de Marta, filha do casal, que os cedeu ao colecionad­or Pedro Corrêa do Lago. Foi ele quem reuniu o acervo sobre o inventor, incorporad­o depois à Coleção Brasiliana do Itaú. É esse acervo que, após passar por São Paulo e Cuiabá, ficará exposto até 9 de dezembro no Espaço Cultural Unifor, em Fortaleza. Os dez postais de Heitor e Hersília estão lá.

Cartões postais enviados por um apaixonado à namorada trazem o inventor em uma de suas máquinas e revelam história de amor de 110 anos atrás

 ?? COLEÇÃO BRASILIANA ITAÚ ?? Dirigível. Postal de Santos-Dumont enviado para Hersília por Heitor
COLEÇÃO BRASILIANA ITAÚ Dirigível. Postal de Santos-Dumont enviado para Hersília por Heitor
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ACERVO PESSOAL Amor. Heitor e Hersília, em foto da família

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