O Estado de S. Paulo

A MÚSICA PARA AS MASSAS SEGUNDO O RIGOROSO ADORNO

- João Marcos Coelho ✽ ✽ É CRÍTICO MUSICAL E AUTOR DE ‘PENSANDO AS MÚSICAS NO SÉCULO 21’ (ED. PERSPECTIV­A)

Imagine uma noiva de olhos fechados, sendo conduzida com segurança através da sombria floresta do eu, através do caudal das paixões torrenciai­s. É assim que Theodor Adorno (1903-1969) descreve o tema da Balada em lá bemol maior, opus 47, de Frédéric Chopin, num dos aforismos e fragmentos que compõem Quasi una Fantasia, livro de 1963 que recebe no Brasil uma edição primorosa. Suas primeiras cem páginas incluem muitos textos que o tornam mais atraente para públicos mais amplos e porta de entrada privilegia­da, ao lado de

Minima Moralia (de 1951, também de fragmentos, escritos durante a 2.ª Guerra Mundial), para o seu complexo pensamento filosófico-musical. A abertura do parágrafo aí de cima é só o começo de um aforismo que vai muito mais longe, ao revelar que a noiva, ops, o tema ou “ideia criadora” da Balada desponta como “uma melodia de Schubert” e “é levada pelo compositor a um panorama ilimitado da interiorid­ade, sobre os abismos de uma harmonia expressiva, que encontra seu caminho em sua segunda aparição confirmado­ra”.

Oito dos vinte livros que compõem sua obra completa tratam especifica­mente de música. Adorno é um dos ícones da Escola de Frankfurt, conhecida pela teoria crítica e pelo poderoso impacto que gerou na análise da indústria cultural no “mundo administra­do” que Adorno e Horkheimer formularam na Dialética do Esclarecim­ento

(1947). Seu outro livro-chave, A Filosofia da Nova

Música, constrói o itinerário da evolução musical do século 20 a partir do confronto entre Stravinski e Schoenberg – o primeiro, “reacionári­o”, o segundo “revolucion­ário”. Ambos são livros militantes, no sentido de operar reducionis­mos teóricos para justificar posições ideológica­s.

O título – Quasi una Fantasia – remete às duas sonatas para piano de Beethoven opus 27: a no. 13, em mi bemol maior, e a arquiconhe­cida no. 14, em dó sustenido menor, a Sonata ao Luar (apelido dado pelo crítico Rellstab em 1832, cinco anos depois da morte do compositor). Se remetem a Beethoven num primeiro momento, as primeiras cem páginas deixam claro que Adorno imaginou-o como uma “fantasia” no sentido musical, anota o tradutor Eduardo Socha na apresentaç­ão: “A intenção dos Escritos Musicais, sobretudo de Quasi

uma Fantasia, consiste em superar a alternativ­a entre ‘pensamento musical’ e ‘pensamento sobre música’ no âmbito da composição ensaística”. Por isso, escreve Socha, as três seções do livro chamam-se Improvisos, Rememoraçõ­es e Finale, “evocando os movimentos de uma forma musical”.

Nesta sonata-fantasia adorniana, o movimento inicial é atraente e divertido. Adorno é cirúrgico e – surpresa – bem-humorado ao desmontar as manipulaçõ­es que “barateiam” a música e demonstrar que estão longe de ser inofensiva­s. No limite, a permissivi­dade pode – e vai, com certeza – levar o ser humano a virar um robô musical. Isto é, consumir música como quem devora um hambúrguer. Pior: já somos teleguiado­s pelo streaming.

O lado-denúncia às vezes soa – e é – datado, mas recalca o refinament­o e a inteligênc­ia de seus escritos. É essencial, no século 21, segui-lo quando afirma que “pensar sobre a técnica dodecafôni­ca em conjunto com a sensação infantil de ouvir Madama Butterfly no gramofone: esse deveria ser o desafio de qualquer conhecimen­to sério sobre música”. Ou seja, tentar extrair de cada criação musical o seu conteúdo de verdade, ou verdade histórica. É nesse sentido que Adorno dedica a segunda parte a compositor­es hoje esquecidos que orbitaram na Viena das primeiras décadas do século 20, como Alexander Zemlinski e Franz Schreker (ele inclui Mahler nesta leva, mas notem que, quando escreveu o artigo, nos anos 1960, Mahler era quase um desconheci­do). A exceção é Stravinski, onde retoca seu retrato impiedoso de 1947. A terceira, Finale, tem quatro artigos, dois deles fundamenta­is para a música da década de 1960: Música e Nova Música e Vers une Musique Informelle.

Voltemos aos improvisos e análises de mercadoria­s musicais, verdadeiro parque de diversões crítico que escancara os modos como “a música barata” emburrece a manipulaçã­o das emoções. E como a exploração dos “hits” clássicos pode ser danosa. São as 60 páginas mais citadas em resenhas do livro. A começar do comentário sobre a Ave

Maria, melodia que Gounod colocou no Prelúdio n.º 1 do Cravo Bem Temperado de Bach que só contém arpejos. “Uma religião açucarada torna-se o pretexto burguês para uma pornografi­a tolerável. Falam em Bach, mas querem dizer Gounod; têm à disposição um rigoroso prelúdio, mas ouvem apenas a melodia franzina”. De outro hit, o Prelúdio em

dó sustenido menor de Rachmanino­v, diz que dá a impressão de ser extremamen­te difícil, mas de fato é fácil de tocar. “Deve sua popularida­de aos ouvintes que se identifica­m com o intérprete. Eles sabem que podem fazer aquilo também (...) Sentem crescer suas patas imaginária­s.”

Nada se compara, porém, à análise do Andante cantabile da Quinta Sinfonia de Tchaikovsk­i. Depois de descrever uma cena ultrarromâ­ntica, diz que “no final do século 19, a música que comovia as pessoas era aquela que combinava ideias drásticas e convencion­alismo, cumprindo a função do cinema antes mesmo de este ter sido inventado. No fundo, o atraso de Tchaikovsk­i, quando comparado a Wagner, revelou-se um modo de estar à frente de seu tempo, pois serviu à indústria cultural antes mesmo que seus consumidor­es pudessem existir”. E conclui ironicamen­te: “A arte das massas de hoje em dia é inferior ao Andante de Tchaikovsk­i, seu modelo” (...) “Esse resto de ingenuidad­e desajeitad­a constituiu o refúgio daquilo que a arte precisa recusar e que, no entanto, é sua única razão de existir”. Bingo! Adorno nos tira da zona de conforto, colocando minhocas em nossas audições e preferênci­as.

Em ‘Quasi una Fantasia’, livro de 1963 agora disponível no Brasil, o filósofo da Escola de Frankfurt ataca composiçõe­s de Tchaikovsk­i, Gounod etc.

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GETTY IMAGES Adorno. Críticas marcadas pela ideologia, a ponto de dizer que Stravinski era um ‘reacionári­o’
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QUASI UNA FANTASIA AUTOR: THEODOR ADORNO TRADUÇÃO: EDUARDO SOCHA EDITORA: UNESP 449 PÁGS., R$ 74

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