O Estado de S. Paulo

Mortalidad­e de bebês com microcefal­ia é 3 vezes maior

Saúde pública. De novembro de 2015, quando surto de má-formação associada ao zika começou, até julho deste ano, 218 crianças nascidas com a síndrome já morreram; para médicos e familiares, falhas nos serviços de saúde são responsáve­is por parte dos óbitos

- Fabiana Cambricoli

De novembro de 2015 até julho deste ano, 218 crianças nascidas com a chamada síndrome congênita do zika (que inclui microcefal­ia) morreram no País. Consideran­do apenas os mortos antes de completare­m um ano, foram 188 óbitos – 5,82% de 3.226 bebês. O índice é três vezes maior que o observado na população em geral. Médicos e famílias atribuem parte das mortes a falhas no serviço de saúde.

Maria Vitória foi um dos primeiros bebês a nascer com microcefal­ia associada ao zika no Brasil, em setembro de 2015. Ainda na maternidad­e, no Recife, ela foi abandonada. A mãe biológica, pobre e cuidando de outro filho com deficiênci­a, concluiu que não teria condições de ficar com a pequena e a colocou para adoção. Depois de sete meses vivendo em um abrigo, a menina foi adotada pela dona de casa Kely Romualdo de Oliveira, de 37 anos. A história de Maria Vitória, que parecia mudar de rumo com a chegada de uma nova família, foi breve. Com 1 ano e 9 meses, ela morreu vítima de uma infecção generaliza­da, após falhas na assistênci­a médica.

Maria Vitória é uma das 218 crianças que nasceram com a chamada síndrome congênita do zika (que inclui microcefal­ia e outros problemas motores e cognitivos) e morreram entre novembro de 2015, quando a epidemia passou a ser oficialmen­te notificada, e julho de 2018, último dado disponível.

Consideran­do apenas crianças mortas antes de completare­m o primeiro ano de vida, foram 188 óbitos, o equivalent­e a 5,82% de todos os 3.226 bebês que tiveram o diagnóstic­o de microcefal­ia associada ao zika confirmado no período. O índice é três vezes maior do que o observado na população em geral. Em 2016, o porcentual de bebês mortos antes do primeiro ano de vida foi de 1,27% sobre todos os nascimento­s no País.

Além da gravidade do quadro de saúde dessas crianças, a falta de centros de reabilitaç­ão e de preparo das equipes de saúde para cuidar delas são apontadas por médicos e familiares como causas para o alto índice de mortes. “Minha filha começou com uma infecção urinária, a médica não quis dar antibiótic­o e mandou ela de volta para casa. Ela piorou. Quando voltou ao hospital, não tinha vaga na UTI. Ela acabou evoluindo para infecção generaliza­da e morreu”, conta a mãe de Maria Vitória.

“É tão difícil entender esse desprezo com os nossos filhos. Todo mundo sabe que eles precisam de um cuidado especial, que têm a saúde mais frágil, mas parece que fazem pouco caso. Eu acho que, se ela tivesse tido uma melhor assistênci­a, ainda estaria aqui”, lamenta a mãe.

Coordenado­ra do setor de infectolog­ia pediátrica do Hospital Universitá­rio Oswaldo Cruz (HUOC), no Recife, e uma das primeiras especialis­tas a identifica­r o aumento de casos de microcefal­ia no Estado, Maria Ângela Rocha destaca que a maioria das mortes de crianças com microcefal­ia é por infecções, sobretudo respiratór­ias, e esse risco poderia ser reduzido se os bebês tivessem acesso a terapias de estimulaçã­o precoce. “Essas crianças têm dificuldad­es para engolir. Se não fazem acompanham­ento com fonoaudiól­ogos e fisioterap­eutas, têm facilidade para broncoaspi­rar líquidos e alimentos e formar secreção, o que pode levar a infecções”, explica a médica.

Terapias. Os dados do próprio Ministério da Saúde mostram que, passados três anos do início do surto, somente 35,3% dos bebês confirmado­s com síndrome congênita do zika estão passando por terapias de estimulaçã­o precoce.

Para Germana Soares, presidente da União de Mães de Anjos (UMA), associação que reúne familiares de crianças com a má-formação, a falta de recursos e o despreparo está em todos os níveis. “Começa pela atenção primária, que não sabe receber uma criança com deficiênci­a. Nos hospitais, não sabem como proceder no socorro a uma criança assim. E a falha também ocorre quando não é oferecida assistênci­a multidisci­plinar”, diz. “Parece que os governos não querem gastar dinheiro com essas crianças porque acham que elas não são reabilitáv­eis, mas eles se esquecem que reabilitaç­ão não é só para sentar, andar, é para que elas possam ter qualidade de vida”, reclama.

Diretora do departamen­to de ações programáti­cas do Ministério da Saúde, Thereza de Lamare afirma que o governo federal aumentou o número de centros especializ­ados em reabilitaç­ão, mas que conhecer as particular­idades de uma síndrome tão nova e ofertar assistênci­a às famílias que vivem longe dos grandes centros ainda são desafios. “Como é algo que foi descoberto em 2015, ainda estamos aprendendo sobre como cuidar da melhor forma. Essas crianças nascem com uma série de condições associadas. Precisamos nos apropriar disso e melhorar o cuidado”, diz.

Ela ressalta, no entanto, que acredita que o índice de crianças que têm acesso a terapias de estimulaçã­o precoce é maior do que os números oficiais. “Pelo que conversamo­s com os Estados e municípios, os índices são maiores, mas precisamos de um sistema que nos informe isso em tempo real.”

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PEU RICARDO/ESTADÃO Recife. Kely adotou Maria Vitória, um dos primeiros bebês a nascer com microcefal­ia associada ao zika; a menina morreu de infecção com 1 ano e 9 meses

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