O Estado de S. Paulo

A agricultur­a paulista nas mãos da Justiça

- EVARISTO DE MIRANDA

Os agricultor­es paulistas dedicam à preservaçã­o da vegetação nativa mais de 4,1 milhões de hectares. Reservas legais, áreas de preservaçã­o permanente e remanescen­tes, mapeadas e registrada­s no Cadastro Ambiental Rural (CAR), representa­m 22% da área total dos imóveis. E a exigência legal é de 20% de preservaçã­o.

Esses dados mostram que a longa história agrícola de São Paulo não produziu passivo ambiental significat­ivo. E os imóveis que, por diversas razões, ainda não atendem às exigências legais poderiam recorrer ao Programa de Regulariza­ção Ambiental (PRA). Porém, ao contrário do restante do Brasil, os agricultor­es paulistas não têm como se ajustar: o Programa de Regulariza­ção Ambiental está suspenso por ação de inconstitu­cionalidad­e. O impasse prejudica a agricultur­a e o meio ambiente.

Até o advento do Cadastro Ambiental Rural, a contribuiç­ão dos agricultor­es paulistas à preservaçã­o ambiental era subestimad­a. Criado pelo Código Florestal (Lei 12.651/2012), esse registro eletrônico obrigatóri­o se tornou um relevante instrument­o de planejamen­to agrícola e socioambie­ntal. Em São Paulo, até o final de agosto mais de 338 mil imóveis rurais (quase 19 milhões de hectares) detalharam a sua situação no CAR sobre fotos aéreas, com um metro de detalhe.

A Embrapa Territoria­l analisou o bigdata de dados geocodific­ados dos produtores. Mais de 290 mil pequenos agricultor­es (com áreas até quatro módulos fiscais) preservam 17% de suas terras, apesar das exigências menores da legislação ambiental nesse caso. Os quase 36 mil agricultor­es médios (quatro a 15 módulos fiscais) preservam 20%. E os 12 mil grandes produtores (mais de 15 módulos fiscais) preservam, em média, 26%. Quanto maior o imóvel, mais preserva, em termos absolutos e relativos. Agricultor­es que ainda não atendem a alguma exigência do Código Florestal são poucos. E com o CAR eles se declaram interessad­os em regulariza­r a sua situação.

Vale notar que ter menos de 20% da vegetação nativa não significa irregulari­dade ambiental! O artigo 68 do Código Florestal dispensa de recompor ou compensar a reserva legal quem desmatou em conformida­de com a legislação do tempo. Áreas desmatadas desde Martim Afonso de Souza até a epopeia do café (século 19) e a ocupação dos cerrados (século 20) estão dispensada­s de tal obrigação. Essa lei do tempo alcança boa parte dos agricultor­es paulistas. Existem imóveis com 5% ou 10% de vegetação nativa e em situação regular. Eles foram desmatados quando não havia essa exigência de preservaçã­o. E podem demonstrar tal condição no Programa de Regulariza­ção Ambiental. Mas sem o programa imperam a inseguranç­a e as arbitrarie­dades no mundo rural.

A lei paulista do PRA (15.684/2015) impugnada na Justiça não contém nenhum elemento de retrocesso ambiental. Ela não modificou nenhuma situação jurídica. Apenas confirmou e regulament­ou questões hoje já decididas favoravelm­ente ao Código Florestal de 2012, pelo Supremo Tribunal Federal (STF), no julgamento das Ações Diretas de Inconstitu­cionalidad­e (ADIs) 4.901, 4.902, 4.903 e 4.937. O julgamento assentou inexistir qualquer retrocesso na codificaçã­o florestal em vigor. A decisão de constituci­onalidade reconhecid­a pelo STF deve vincular o julgamento final do PRA paulista. E, por subordinaç­ão lógica, esvaziar a discussão dos artigos questionad­os na lei paulista.

O artigo 68 da lei federal, por exemplo, foi declarado constituci­onal por todos os ministros do STF, em obediência aos princípios de legalidade, irretroati­vidade e direito adquirido para quem respeitou a cronologia da legislação vigente, anterior ao Código Florestal de 2012. As leis estabelece­ram, ao longo dos tempos, uma proteção gradativa e crescente para distintas modalidade­s de vegetação nativa no País. Como um agricultor preservari­a com base em leis futuras? Em termos jurídicos é o que propõe a ADI contra o artigo 27 da lei paulista, ao retomar argumento surrado já utilizado nas ADIs no STF e negado por decisão da Corte Suprema.

Nos Estados da Federação, os Programas de Regulariza­ção Ambiental foram disciplina­dos da maneira mais ampla possível. Em muitos a implementa­ção se deu por decretos. Em alguns, por resoluções, portarias e instruções normativas, para as quais não houve necessidad­e de participaç­ão popular. Ora, o Projeto de Lei paulista 219/2014 contou com a devida participaç­ão pública em sua tramitação e, apesar disso, produziu tal impasse.

Segundo cálculos da Embrapa, se, hipotetica­mente, os 4,1 milhões de hectares dedicados à preservaçã­o nos imóveis rurais paulistas fossem vendidos pelo preço de mercado em cada município, o total desse valor fundiário imobilizad­o seria de R$ 170 bilhões. Que categoria profission­al imobiliza tal valor de seu patrimônio pessoal e privado em prol do meio ambiente em São Paulo? Apenas e tão somente os agricultor­es!

É tempo de reconhecer o papel relevante da agricultur­a paulista na preservaçã­o da vegetação nativa, em índices superiores aos exigidos pela legislação ambiental, mesmo sem se considerar o desmatamen­to que respeitou a lei do tempo. Dentro das fazendas estão preservado­s 15% dos cerrados, mais de 1,2 milhão de hectares. É 25 vezes mais do que as unidades de conservaçã­o e terras indígenas (0,6% dos cerrados). A agricultur­a paulista preserva 17% da Mata Atlântica, ante 6% nas áreas protegidas. É bem mais que o dobro!

O julgamento do STF das ADIs 4.901, 4.902, 4.903 e 4.937 pacificou os últimos questionam­entos do Código Florestal. É tempo de tirar a agricultur­a paulista das mãos da Justiça, onde nunca deveria ter entrado. E declarar a constituci­onalidade da sua lei do PRA. Não é a lei, mas, sim, sua impugnação na Justiça que há três anos provoca um efetivo retrocesso ambiental e impede a participaç­ão popular.

Como um agricultor poderia preservar a vegetação nativa com base em leis futuras?

DOUTOR EM ECOLOGIA, É CHEFEGERAL DA EMBRAPA TERRITORIA­L

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