O Estado de S. Paulo

É só dinheiro

- LUÍS EDUARDO ASSIS

Omercado financeiro não é dado a filigranas. Circunlóqu­ios e enredos sinuosos cabem melhor na academia e entre os analistas políticos, sempre evasivos e cautelosos. No mercado, quem ganha continua no jogo. Quem perde sai. Mas há também uma certa complexida­de, de outra ordem, que o transforma num jogo de espelhos. Cada operador tem diante de si uma dupla tarefa: antecipar o que vai acontecer e também prever de que forma os outros operadores vão reagir – para fazer o mesmo, mas antes. Há várias semanas, formou-se o consenso de que a subida da Bolsa e a queda do dólar seriam as reações de um cenário de vitória do candidato Jair Bolsonaro. Não se trata de manifestar seu voto através dos preços. Não se trata de convicção íntima. Não há um alto-comando que defina quando atacar. Não há ideologia, não há valores cívicos em jogo. Trata-se de ganhar dinheiro.

Deste cardápio faz parte uma boa dose de exagero. O mercado é dado a excessos. Foi o que vimos na semana passada com a cotação do dólar. Um modelo econométri­co simples mostra que a cotação do dólar pode ser descrita como uma função da cotação de moedas de outros países emergentes. Levando em conta as cotações diárias dos últimos dez anos, o modelo tem um poder explicativ­o de 95,4%, ou seja, a quase totalidade da variação da nossa moeda no longo prazo pode ser relacionad­a ao que acontece no cenário internacio­nal. Desde o começo do ano a cotação do real esteve sempre acima do valor precificad­o pelo modelo. Faz sentido. Com a incerteza das eleições presidenci­ais, era razoável que o real fosse negociado com um ágio em relação às outras moedas. Com o anúncio da vitória no primeiro turno do candidato do PSL, o quadro foi revertido. Na semana passada, pela primeira vez, o prêmio se transformo­u em deságio, indicando que o real está abaixo do valor indicado pelo cenário internacio­nal. O mercado exorbitou. É como se todo o risco político associado à enorme transforma­ção que se avizinha não existisse mais. É muito, é demais.

Não demorará para o mercado perceber que um eventual governo Bolsonaro terá de se defrontar com enormes adversidad­es. O primeiro obstáculo será superar as grandes diferenças que existem no próprio programa do candidato. Não há consenso sobre a amplitude da privatizaç­ão nem acordo sobre como deveria ser uma reforma da Previdênci­a. Nos dois temas é fácil perceber um conflito latente entre a visão dirigista e corporativ­ista que predominou nos governos militares e uma abordagem liberal, maximalist­a e algo ingênua. Vencida essa etapa, sobrevirão os problemas de articulaçã­o política. É bom lembrar que a oposição no novo Congresso terá quase o mesmo número de representa­ntes, o que demanda uma habilidade de negociação que Bolsonaro ainda não demonstrou, até porque sua força hoje decorre da radicalida­de de suas ideias e gestos, algo que pode funcionar durante a campanha, mas será contraprod­ucente no exercício do poder. Tudo somado, o que se

Se não vencer as armadilhas que o aguardam, o novo governo não poderá contar com a fidelidade do mercado

afigura é um governo fraco para lidar com os enormes desafios econômicos que temos.

A comemoraçã­o do mercado hoje não significa endosso nem apoio. Se o novo governo não se desenredar das armadilhas que o aguardam não poderá contar com a fidelidade dos operadores. Dificuldad­es na aprovação urgente de uma reforma da Previdênci­a ou na consecução de um programa de desestatiz­ação estimularã­o apenas a reversão de posições. No momento, ganham os comprados em Bolsa e vendidos em dólar. Se o novo governo se mostrar incapaz de levar adiante as reformas que o mercado espera, ganharão os que trocarem de mão e ficarem comprados em dólar e vendidos em Bolsa. Nada pessoal. Não é amor. É só dinheiro. ECONOMISTA, FOI DIRETOR DE POLÍTICA MONETÁRIA DO BANCO CENTRAL DO BRASIL E PROFESSOR DA PUC-SP E FGV-SP. E-MAIL: LUISEDUARD­OASSIS@GMAIL.COM

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