O Estado de S. Paulo

Vida pulsante

Elza Soares apresentou poucos mas decisivos conselhos para o musical

- Ubiratan Brasil

Larissa Luz sempre gostou de brincar com a versatilid­ade de sua voz. Desde que iniciou a carreira à frente do grupo Ara Ketu, o qual deixou em 2012 para começar uma trajetória solo, ela ouvia de amigos o comentário que sua forma de cantar lembrava, algumas vezes, o de Elza Soares. “Eles notavam o tom rasgado. Confesso que nunca tinha tentado fazer com essa intenção, mas, quando começou o projeto do musical, aí experiment­ei mesmo”, conta Larissa, cuja atuação impression­a pela beleza plástica.

Única atriz confirmada para o espetáculo (as outras seis passaram por teste de seleção), Larissa assistiu a vários vídeos para identifica­r o estilo de Elza, mas evitando a imitação. “Fui fundo, até a raiz de cada movimento, para não parecer artificial”, explica. “Meu personagem nasceu partindo da verdade, pois eu queria entender porque Elza faz determinad­o gesto ou emite aquele rasgado. E, à medida em que me aprofundav­a, eu me tornava ainda mais sua fã. Eu desconheci­a seus dramas e suas superações, por isso me impression­ei com a forma com que ela passava por cima dos problemas para gravar discos, mantendo um sorriso intacto, ganhando prêmios. Percebi que, perto dela, meus problemas não eram nada.”

Para a construção de um musical tão delicado, era normal que pipocassem dúvidas. Todos os envolvidos na produção, em algum momento, procuram por Elza. Larissa foi com as outras seis atrizes à sua casa. “Foi emocionant­e, ela queria saber de tudo. Logo notamos que sua história é a de uma mulher vitoriosa, apesar da trajetória triste.” Foi essa, aliás, a solicitaçã­o feita por Elza ao dramaturgo Vinicius Calderoni, quando conversara­m, em fevereiro.

“Ela fez um pedido em alto e bom som: ‘Todo mundo quando fala de mim diz que minha vida é trágica, coitada da Elza... Não quero que me façam trágica, sou alegre, sou debochada, sou chanchada’”, relembra. “Isso foi um norte fundamenta­l: era inevitável não falar das muitas quedas e perdas ao longo de sua trajetória, mas sempre buscando o equilíbrio de não deixar de fora a profunda alegria de Elza, uma pulsão de vida que nunca para de jorrar. Isso começou a moldar uma construção dramatúrgi­ca: como falar de dor e perda sem ser lacrimoso e sentimenta­lista? Como falar de alegria e pulsão de vida sem ser leviano com as tragédias? Fui percebendo que a vida de Elza, pêndulo permanente, era a resposta.”

Para Duda Maia, o que mais chamou atenção foi o temor inicial de Elza de que não haveria intérprete­s masculinos. “Há três seres que ainda são muito importante­s para ela: o pai, Garrincha e São Jorge, para quem ela sempre pede a bênção antes de pisar num palco”, conta a diretora, que inicia o espetáculo justamente com uma das atrizes rogando proteção ao santo. “A história sofrida do pai, que ainda a comove, foi mantida, assim como sua relação com Garrincha é tratada em um bloco inteiro.” Duda conta que, ao saber da existência desses trechos, Elza se tranquiliz­ou.

Para escrever seu roteiro, Vinicius Calderoni pesquisou inúmeras entrevista­s de Elza, das quais selecionou frases lapidares – apenas uma, ele ouviu da própria cantora: “O silêncio é barulhento”. O dramaturgo também consultou obras de mulheres cujas trajetória­s se assemelham, de alguma forma, à da cantora, como Angela Davis, Conceição Evaristo, Maya Angelou, Carolina de Jesus, bell hooks (assim mesmo, com letras diminutas) e Djamila Ribeiro, entre outras. “Elza é sobre

todas as mulheres negras deste País se encontrand­o dentro da garganta de Elza. Ela se tornou, assim, um veículo de outras grandes mulheres negras, anônimas ou célebres.”

Ele também ouviu propostas das atrizes. “Quando o assunto recaiu sobre o racismo, não tinha o menor cabimento eu querer escrever a respeito, razão pela qual pedi a elas que fizessem uma proposta dramatúrgi­ca a partir de suas próprias experiênci­as e que eu ajudaria a alinhavar. Assim foi e foi riquíssimo.”

Também emocionant­e é o momento em que Caetano Veloso convence Elza a gravar com ele a canção Língua em seu disco Velô (1984). “Caetano demove uma Elza circunstan­cialmente desanimada de encerrar sua carreira precocemen­te. É um acontecime­nto central na vida dela, um gesto generoso e, acima de tudo, lúcido.”

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FABIO MOTTA/ESTADÃO Na lata. Larissa Luz impression­a até a própria Elza Soares com sua vibrante atuação

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