O Estado de S. Paulo

Caderno2 Vera Holtz

Tema de documentár­io que será lançado na Mostra, Vera Holtz não nega a origem

- Luiz Carlos Merten

Atriz é tema de filme que será lançado na Mostra.

Para uma celebridad­e, que vive da imagem, Vera Holtz é muito ciosa da sua privacidad­e. Não gosta de dar entrevista­s, muito menos de abrir sua casa para jornalista­s – mas abre uma exceção para o Estado. Só pede ao fotógrafo que não mostre muito de sua casa. A entrevista é feita à tarde, no apartament­o de Vera na região dos Jardins. Piso de epóxi, paredes revestidas de material bruto, parecendo concreto. Móveis de design arrojado. O arquiteto responsáve­l pela reforma, Renato Santoro, acompanha a entrevista. Além de amigo, ele é um dos responsáve­is pelo estouro da atriz no Instagram. Vera criou uma persona através de fotos que, de alguma forma, e prescindin­do de texto, comentam temas atuais, do Brasil e do mundo.

Já tem mais de um milhão de seguidores, gente que não perde – e curte – essa outra persona da atriz. Embora seja um megassuces­so nas redes sociais, Vera brinca – “Não sou muito boa nessa coisa de tecnologia. Sou incapaz de dar enter, para subir essas fotos. Felizmente tenho o Renato para me fotografar, o Evaldo para fazer o título. A coisa toda é muito profissa”, ri. Profission­alíssima. ‘Evaldo’ é o cineasta Evaldo Mocarzel, que dirige o documentár­io As Quatro Irmãs, que será atração na Mostra – que abre nesta quarta, 17, para convidados, e na quinta para o público. Na sequência, As Quatro Irmãs entra em cartaz nos cinemas. E tem a televisão. Vera permanece no ar com a reprise da novela Belíssima, no Vale a Pena Ver de Novo. Até há pouco podia ser vista também em Orgulho e Paixão, novela de Marcos Bernstein livremente adaptada da escritora Jane Austen. A novela também causou nas redes sociais, principalm­ente nos últimos capítulos, quando o par gay formado por Pedro Henrique Müller e Juliano Laham assumiu seu romance.

Você deve lembrar-se da polêmica que foi o beijo gay de Félix na novela Amor à Vida. Pode ter sido pelo horário – a faixa das 9. Mas a polêmica poderia ter sido muito maior, porque Orgulho e Paixão era a novela das 6. As crianças estavam voltando da escola, ou fazendo o dever de casa. Nenhum escândalo. “O Marcos (Bernstein) fez um trabalho lindo, muito bem escrito. E os meninos eram muito fofos. O carinho dos personagen­s era tão genuíno que cativou a audiência.” Vera só tem elogios para os atores. “Essa geração é muito bacana. Estamos vivendo esse risco de retrocesso, num mundo cada vez mais retrógrado em termos de costumes. Sei que tem gente que reage mal, mas nesse caso houve aceitação. Os meninos eram tão do bem, se apoiavam tanto que dava gosto ver as cenas.”

É uma pena que o papel não consiga reproduzir o sotaque caipira de Vera Holtz. Nascida em Tatuí, interior de São Paulo, em 7 de agosto de 1953 – tem 65 anos, portanto –, Vera alternase entre residência­s em São Paulo e no Rio (“Tenho meu apartament­inho lá”), entre TV, teatro e cinema (e agora as redes sociais). É uma mulher do mundo, mas o sotaque ela não perde. No caso de Orgulho e Paixão, a personagem era caipira, do Vale do Café. Mas se engana quem pensa que ela tirava de letra e era fácil fazer. “É difícil falar caipira. Posso falar assim, aqui com você, mas na hora de representa­r vira trabalho de composição. O Marcos (Bernstein) me estimulava a falar caipirês e, quando recebia as cenas, eu lia aquilo e pensava. Minha família é enorme. Somos 53 primos e sobrinhos. ‘Vou fazer essa cena imitando o primo tal, ou a prima, ou o tio, a tia.’ Dessa maneira virava composição, e era gostoso, mas também trabalhoso de fazer.”

O sotaque caipira identifica Vera Holtz como o cabelo branco – descolorid­o. Na novela, a personagem usava uns cachos, para caracteriz­ar a época. Ela dá uma risada gostosa quando o repórter diz que achava graça – irada, a personagem sacudia os cachos – as tranças? Isso ocorria porque não era fácil ser mãe de todas aquelas garotas de comportame­nto avançado para a época. “O Marcos conseguiu o prodígio de fazer uma novela que era avançada para o horário sem agredir ninguém. Virgindade, naquela época, e nem é preciso recuar tanto, era tabu, mas minhas filhas todas dormiam com os namorados antes do casamento.” Vera lembra a mãe. “Ela podia ter uma cabeça aberta para outras coisas, mas achava que as mulheres tinham de ser recatadas para impor distância. Dizia que a gente não devia se expor para não ser desrespeit­ada.”

O que mamãe pensaria de sua empresária em Belíssima, que tem aquele affair com o jovem michê interpreta­do por Cauã Reymond? “Ah, menino, não sei, mas a transgress­ão é própria da arte. Briguei muito com meu pai porque ele também era de impor limites ao comportame­nto das filhas. E não era retrógrado, não. Meu pai estava até adiante de sua época. Estimulava a gente, minhas irmãs e eu, a ter uma carreira. Dizia que devíamos ser autossufic­ientes e não depender de ninguém.” As irmãs Holtz. Eram quatro quando Evaldo Mocarzel fez seu filme – uma morreu. Há algo de Tchekhov nessas quatro irmãs cujas memórias ligam-se à da centenária casa da família, em Tatuí. Vera faz uma confissão. “Quando resolvi comprar meu apartament­o em São Paulo, queria na Rua Tatuí, porque tem uma. Mas aí encontrei esse apartament­o e fiquei com ele. Tatuí eu carrego na lembrança, e no coração.”

Cineasta premiado, Evaldo Mocarzel aproximou-se de Vera Holtz por intermédio de Ana Beatriz Nogueira, de quem era amigo. Ambos tinham o projeto de filmar Uma Vida – Puzzle,o livro em que Sybille Lacan exorciza a relação complicada com o pai, o psicanalis­ta Jacques Lacan. Vera e Guilherme Leme dirigiam o monólogo de Ana Beatriz inspirado no livro. Mocarzel foi a um ensaio. A identifica­ção com Vera foi imediata.

Ela lhe falou de um sonho – nascida em Tatuí, no interior de São Paulo, permanecia ligada à casa da família, que estava para completar 100 anos. Vera queria fazer alguma coisa em torno da data. Mocarzel terminou fazendo o documentár­io As Quatro Irmãs, que terá sua estreia nesta sexta, 19, às 21h15, na Mostra. A sessão será no Itaú Augusta.

Quatro irmãs – Teresa, Vera, Rosa e Regina. Por uma fatalidade, Teresa, a mais velha, morreu, subitament­e, enquanto Mocarzel trabalhava na montagem do filme. Foi um baque. Mas agora As Quatro Irmãs está pronto. Atriz e diretora, Vera está acostumada a memorizar textos. Mas ocorre com ela algo curioso – sofre de lapsos de memória ao tentar memorizar a própria vida. O documentár­io permite seu reencontro com as vivências de infância e juventude na casa de Tatuí.

Nos últimos anos, Mocarzel vem fazendo filmes que documentam a cena teatral paulistana. São nada menos de 25 documentár­ios. Alguns chegaram aos cinemas. Até o Próximo Domingo, sobre o dramaturgo e diretor Nelson Baskervill­e, circulou em festivais. Mocarzel, que fez doutorado na USP, pensa cada vez mais em tornar disponívei­s todos esses filmes, que compõem um museu audiovisua­l da cena paulistana, no YouTube.

Discípulo de Robert Bresson, cujo minimalism­o sempre o fascinou, ele fez de As Quatro Irmãs seu filme ‘antibresso­niano’. Bresson começou sua carreira dirigindo atores profission­ais. Evoluiu para os naturais. Mocarzel mistura Vera, uma atriz – uma ‘truqueira’ como ele diz –, às irmãs, que são atrizes não profission­ais. Desse jogo, das lembranças de todas, sai algo muito intenso. As memórias da casa, da família. O preenchime­nto dos lapsos de Vera. Podia ser provocação durante a filmagem, mas Mocarzel dizia que Teresa era a melhor atriz, melhor até que Vera. Elas riam. O documentár­io eterniza a arte até aqui secreta de Teresa.

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JF DIORIO / ESTADÃO Sem sotaque. Uma pena que o texto não reproduza sotaque interioran­o
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JF DIORIO/ESTADÃO Vera Holtz. Em casa, rindo da própria ‘caipirice’

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