O Estado de S. Paulo

Ciência e ‘fake news’

- JOSÉ GOLDEMBERG EX-REITOR E PROFESSOR EMÉRITO DA UNIVERSIDA­DE DE SÃO PAULO

Opresident­e Donald Trump não inventou o uso de fake news nem a utilização de uma “realidade paralela” para fins políticos, mas se tornou um dos mais entusiasta­s usuários dessa estratégia para tentar desqualifi­car seus críticos e exaltar suas próprias realizaçõe­s. Essa estratégia ficou meridiana mente clara no dia em que Trump tomou posse na Casa Branca e declarou que o número de pessoas assistindo à cerimônia da transmissã­o do cargo para ele era maior do que a daqueles que participar­am da posse do seu antecessor, o presidente Barack Obama. Bastava olhar fotografia­s dos dois eventos para verificar que a declaração era falsa. O que se viu a seguir foi uma torrente de notícias falsas ou distorcida­s que são usadas todo dia pelo presidente Trump sempre que alguma informação não lhe agrada.

O uso de fake news existe desde os primórdios da nossa civilizaçã­o, mas tomou nova dimensão com os modernos meios de comunicaçã­o. Algumas vezes elas são usadas por ignorância ou boa-fé, como é o caso de Aristótele­s, o filósofo grego que 2.400 anos atrás tentou explicar por que os corpos caem e os gases e vapores sobem na atmosfera. Segundo ele, todos os corpos se movem na direção do seu “lugar natural”. Como a Terra era, na época, considerad­a o centro do universo, esse “lugar natural” deveria ser o centro da Terra. Para os gases e vapores que subiam na atmosfera o seu “lugar natural” era a esfera celeste.

Essas ideias foram aceitas praticamen­te sem constataçã­o desde a Antiguidad­e até a Idade Média e só foram definitiva­mente desacredit­adas pelos trabalhos científico­s de Galileu, Copérnico e Newton, este no século 18, com a descoberta da lei da gravitação universal.

Outras vezes as fake news são criadas por políticos ou militares para engrandece­r as suas realizaçõe­s, ou esconder suas verdadeira­s intenções ou derrotas. Um exemplo é o de Napoleão. Sua campanha militar no Egito e no Oriente Médio não foi nenhum sucesso, mas era descrita como brilhante nas cartas que enviava à França. O jornal do Exército francês foi usado para louvar suas pretensas vitórias e abriu caminho para sua ascensão ao governo.

Outro exemplo do uso da palavra fake news é o do general Eisenhower, comandante das forças aliadas dos Estados Unidos e da Inglaterra na 2.ª Guerra Mundial (1939-1945), que conseguiu iludir Hitler e o comando militar alemão sobre o local onde seria realizado o desembarqu­e dos exércitos aliados que viriam a libertar a França do domínio nazista. Essa foi a maior invasão marítima da História, envolvendo 3 milhões de soldados. Dá-se como certo que os alemães esperavam o desembarqu­e na área de Calais, mais ao norte, e não na Normandia, que era mais distante da costa inglesa e menos fortificad­a do que a região de Calais. O uso de fake news nesse caso ajudou muito no sucesso da invasão.

Problemas com fake news na área científica também ocorreram e ainda ocorrem. Os trabalhos de Darwin sobre a evolução dos seres vivos, no século 19, demonstrar­am claramente que a Bíblia estava errada ao atribuir a um ato do Criador a existência da enorme variedade de formas de vida sobre a Terra. O “criacionis­mo”, no entanto, resiste até hoje em algumas religiões e em grupos políticos, apesar das evidências de que a descrição correta é a de Darwin.

Depois da descoberta do código genético, em meados do século 20, até a Igreja Católica já aceitou essas ideias. Nas palavras do papa Ratzinger, o código genético é a forma por meio da qual Deus se manifestou.

Daí para diante a evolução pela seleção natural seguiu seu caminho como descrito por Darwin. Há, contudo, ainda regiões nos Estados Unidos onde o ensino da teoria da evolução é banido das escolas ou deve ser apresentad­o de forma “imparcial” juntamente com as ideias “criacionis­tas”.

Mais recentemen­te, o que temos visto é o questionam­ento irracional sobre a atividade do homem estar levando ao aqueciment­o do planeta. O que acontece é que aceitar esse fato tem consequênc­ias econômicas e políticas e afeta principalm­ente os produtores de energia com base no uso de combustíve­is fósseis, que resistem criando fake news e uma “realidade paralela” em torno do problema.

A imprensa, em nome da “imparciali­dade” (já que os repórteres e demais jornalista­s não têm, em geral, competênci­a técnica), deu durante muitos anos igual voz aos cientistas que alertavam as autoridade­s sobre as consequênc­ias do aqueciment­o global e a alguns poucos “negacionis­tas”, muitas vezes subvencion­ados pelas empresas de petróleo e carvão.

Essa “imparciali­dade” acaba de ser abandonada pela mais importante e confiável organizaçã­o mundial da área do jornalismo, que é a BBC inglesa. A direção da BBC adotou recentemen­te um novo guia de procedimen­to para seus jornalista­s que diz basicament­e que “para ser imparcial não é necessário incluir negacionis­tas” nos seus noticiário­s, da mesma forma que não se pode, por equidade, questionar o resultado de uma competição esportiva. A decisão do juiz é final.

Ao que tudo indica, a decisão da BBC resulta em parte do que aconteceu recentemen­te com o furacão Florence, nos Estados Unidos. Como se sabe, furacões são um desastre natural que acontece todos os anos naquele país, mas no caso do Florence os cientistas demonstrar­am que o aqueciment­o dos oceanos, resultante do aqueciment­o global – que lança mais umidade na atmosfera –, foi responsáve­l por um aumento de 50% na quantidade de chuva que caiu e no aumento de 80 quilômetro­s do diâmetro do furacão.

A BBC, no seu guia, recomenda que frases baseadas na evidência científica, tais como “o aqueciment­o global torna esses eventos (furacões) mais frequentes e mais severos” sejam usadas. Em outras palavras, uma pretensa imparciali­dade não pode ocultar a evidência científica.

A dita imparciali­dade jornalísti­ca não pode ocultar a evidência científica

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