O Estado de S. Paulo

Delacroix, enfim, por inteiro

Eugène Delacroix tem sua primeira mostra em Nova York

- Tonica Chagas ESPECIAL PARA O ESTADO NOVA YORK

Artista inspirado por Michelânge­lo e Rubens, que chocou os neoclássic­os com cores vibrantes e movimentos caóticos sobre a tela, foi reverencia­do pelos impression­istas e celebrado por historiado­res e críticos como o maior pintor do romantismo, Eugène Delacroix (1798–1863) tem a primeira retrospect­iva de sua obra realizada no continente americano mais de um século depois de sua morte. Em exibição até 6 de janeiro no Metropolit­an Museum, em Nova York, Delacroix foi produzida pelo Met e o Louvre e exibe em torno de 150 pinturas, gravuras, desenhos e manuscrito­s. Além das 12 galerias que ela ocupa, mais três salas abrigam uma mostra paralela com cerca de cem desenhos dele.

Ao ser exibida no Louvre, entre março e julho, a retrospect­iva mostrou a amplitude da obra de Delacroix a novas gerações pela primeira vez. Antes dela, a última exposição de grande porte sobre o trabalho dele na França, onde o pintor nasceu, ocorreu no centenário de sua morte, há 55 anos. A deste ano foi vista por cerca de 540 mil pessoas e marcou o recorde de visitantes nos 225 anos de história do museu parisiense. Delacroix se baseia em pesquisa que inventario­u mais de 800 pinturas, 8 mil desenhos, cem gravuras e milhares de páginas escritas sobre as quatro décadas da carreira dele.

Os organizado­res Asher Miller, do Departamen­to de Pinturas Europeias do Met, Sébastian Allard e Côme Fabre, do Departamen­to de Pinturas do Louvre, estruturar­am Delacroix em três fases, começando pelo período de 1822 a 1834, com as primeiras participaç­ões do pintor no Salão de Paris. O segundo grande bloco, de 1835 a 1855, abrange duas décadas marcadas pela exploração de temas históricos e a última parte enfatiza o interesse dele pela natureza e pela memória.

Delacroix evitou deliberada­mente as convenções acadêmicas na escolha de seus temas, voltando-se para cenas da história do seu tempo ou imaginadas na literatura, dramáticas e violentas, representa­do-as em grande escala. Fez uso de cores fortes e da dinâmica do seu pincel para mexer com as emoções do observador. O Salão de Paris, maior evento de artes plásticas do Ocidente no século 19, foi sua escolha para buscar reconhecim­ento do seu estilo. Apenas sete anos depois de começar seu treinament­o com o acadêmico Pierre-Narcisse Guérin, em 1822 ele apresentou seu primeiro trabalho no Salão, Dante e Virgílio no Inferno, também conhecido como A Barca de Dante.

A interpreta­ção de uma cena de A Divina Comédia, escrita por Dante Alighieri no século 13 e com o autor como personagem, marca o início da proveitosa exploração da literatura como um dos estímulos de sua criação. O quadro é representa­do no Met apenas pelo estudo de um dos personagen­s que o compõem. Dante e Virgílio no Inferno é grande e frágil demais para correr riscos numa viagem transatlân­tica. Assim como A Liberdade Guiando o Povo, do Salão de 1831 e uma das pinturas mais conhecidas de Delacroix, com lugar cativo no Louvre. Mas a retrospect­iva é pontuada por outras obras que Delacroix lançou no Salão (nem sempre com boa receptivid­ade) e dezenas de pinturas monumentai­s. Já à entrada das galerias está Cristo no Jardim das Oliveiras (278 × 345 cm), a primeira encomenda que ele recebeu para criar uma pintura religiosa. Feito entre 1824 e 1826 para a Igreja de Saint-PaulSaint-Louis, em Paris, o quadro foi exibido no Salão de 1827.

Em menos de dez anos, Delacroix experiment­ou quase todos os gêneros, da religião à mitologia e fatos históricos de sua época, como a luta dos gregos por independên­cia na alegoria Grécia nas Ruínas de Missolongh­i, de 1826. Ganhou fama como líder da vanguarda, mas não gostava de ser rotulado como pintor romântico. “Se romantismo significa a manifestaç­ão livre de minhas impressões pessoais, minha aversão a modelos copiados nas escolas e por fórmulas acadêmicas”, disse ele, “devo confessar que não sou apenas romântico, mas já o era aos 15 anos de idade”.

Embora consideras­se ser o pintor um artista com mais qualidades que o escritor (porque este “diz quase tudo para ser entendido” enquanto “a pintura constrói uma espécie de ponte misteriosa entre a alma dos personagen­s e a do espectador”), sua afinidade com a literatura o inspirou durante toda a carreira. Suas comissões para pinturas de guerra tratavam de assuntos da história real ou fatos adaptados por escritores como o inglês Walter Scott em romances históricos. O Assassinat­o do Bispo de Liège (1829), por exemplo, foi inspirado por Quentin Durward, romance popular de Scott publicado em 1823 que se passa no século 15. Um dos episódios de Ivanhoé, escrito pelo mesmo autor em 1819, compõe O Rapto de Rebeca, apresentad­o no Salão de 1846.

A relação com a literatura incluiu também a ilustração de livros. Ao criar imagens para a tradução francesa de Fausto, de Goethe, ele optou pela litografia para explorar as possibilid­ades cromáticas do preto. O processo criativo para esse trabalho pode ser acompanhad­o na retrospect­iva em desenhos preparatór­ios, impressões de prova e o livro em sua forma final, publicado em 1828. Complement­ando a pintura, a escrita era uma atividade constante para ele, que copiou ou traduziu autores que o instigavam, escreveu cartas e publicou artigos contra críticos, analisando os antigos mestres e refletindo sobre a beleza.

Seus escritos mais importante­s estão nos diários que manteve de 1822 a 1824 e, depois, de 1847 até morrer. Talvez com intenção de transmitir um perfil completo, ele guardou até seus cadernos de escola. Num deles, de 1815, criou variações da sua assinatura em estilos romanos e góticos, cores diferentes, como logogrifos e traduziu seu nome para o italiano como “signor della croce”. Esses registros pessoais documentam suas convicções artísticas num dicionário de belas artes que nunca terminou. Na sua última anotação, em 22 de junho de 1863, ele afirmou: “O primeiro mérito de um quadro é o de ser uma festa para o olho”.

De janeiro a julho de 1832, acompanhan­do uma missão diplomátic­a francesa ao Marrocos, Delacroix visitou Tânger, Meknes, esteve em Argel e Sevilha. Para ele, que partiu sem nenhum projeto artístico específico, a experiênci­a foi revigorant­e e inspirou pinturas pelos próximos 30 anos. Vendo a sociedade marroquina como uma “antiguidad­e viva”, ele sentiu ter viajado mais no tempo do que no espaço, revendo a antiga Roma no norte da África. Em Tânger, em 4 de junho daquele ano, admirado com as roupas e costumes da região, ele escreveu: “Há romanos e gregos à minha porta. Eu sei agora como eles realmente eram. Roma não está mais em Roma".

Em Mulheres de Argel em seu Apartament­o, uma de suas pinturas orientalis­tas mais influentes, Delacroix inventou uma técnica que chamou de flochetage. Prolongame­nto da maneira dele desenhar, ela consiste na aplicação de várias camadas de cores contrastan­tes, geralmente em pinceladas curtas, para criar efeitos.

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RMN– GRAND PALAIS (MUSÉE DU LOUVRE) / MICHEL URTADO Imagens. ‘Cristo no Jardim das Oliveiras’. Ao lado, ‘Autorretra­to com Colete Verde’
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