O Estado de S. Paulo

‘Eu não mudo de opinião...’

- ROBERTA MARTINELLI E-MAIL: ROBERTA.MARTINELLI@ESTADAO.COM

Difícil falar de música quando artistas são atacados e ameaçados. Difícil demais falar de música enquanto um mestre de capoeira é brutalment­e assassinad­o por motivações políticas. Difícil falar de música enquanto garotas são agredidas nas ruas do nosso País. Dificílimo falar de música enquanto um jovem tem medo de sair de casa por amar. Tá difícil mesmo. Brasil 2018. O não entendimen­to de algumas leis e artistas sendo xingados por isso. Lembrei de um outro tempo que estudei e não vivi e não quero viver nunca. O ano era 1964. No dia 11 de dezembro estreia no Teatro do Shopping Center Copacabana, que era sede do Teatro de Arena no Rio de Janeiro o show manifesto Opinião. Espetáculo de 45 minutos com elenco formado por Nara Leão (depois substituíd­a por Maria Bethânia), João do Vale e Zé Keti, com integrante­s do Centro Popular de Cultura da UNE e direção de Augusto Boal. O show surgiu em um momento bem grave do nosso País, pós golpe de estado desse ano, um golpe militar que encerrou o governo do Presidente João Goulart, também conhecido como Jango.

Com o golpe militar, aumentou a repressão e o grupo do Teatro de Arena de São Paulo se separou e seus integrante­s foram morar espalhados em outros estados. Boal foi morar em Poços de Caldas (MG) e depois foi para o Rio de Janeiro e lá resolveu fazer um espetáculo como resposta à ditadura vigente. Os encontros aconteciam no Zicartola, restaurant­e mantido por Cartola e Dona Zica, era um show com relatos deles, com histórias de repressão, com opinião. Opinião que estava sendo vigiada na época. E opinião que está presente na obra de arte. Escuto muitas vezes pessoas dizendo que arte não tem que ter opinião e fico inconforma­da. Uso como exemplo o que aconteceu na semana passada no show do Roger Waters na semana passada. Li pessoas escrevendo que foram a um show e não à um ato político, mas, pera lá, todo show é um ato político, a obra de um artista também, ainda mais a de um artista como ele que teve familiares assassinad­os por nazistas. Querer a arte quieta e sem opinião é cavar um buraco para entrar depois. Fiquemos atentos e fortes.

O show Opinião foi censurado quando veio para São Paulo mesmo depois de “liberado pelo órgão competente que liberou a peça para todo território nacional” (trecho esse retirado da matéria do Correio da Manhã em Maio de 1965), tentaram violar uma obra teatral e musical e depois disso as consequênc­ias foram as que conhecemos, estudamos em aulas de História e não queremos nunca mais que se repita.

Arte é política, tentar separar as duas coisas é impossível.

 ?? PHILIPS ?? Opinião. 1964
PHILIPS Opinião. 1964
 ??  ??

Newspapers in Portuguese

Newspapers from Brazil