O Estado de S. Paulo

Icônico e histórico, Nick Cave em SP torna a dor em amor

- CRÍTICA: Pedro Antunes

Nick Cave não poupa a si. Não poupa seus Bad Seeds, banda que o acompanha desde 1983. Não poupa o público. Ele não é do time de “puxar o curativo de uma só vez para sentir a uma dor única”. Nick Cave é do tipo que sequer pensa num curativo. Deixa a ferida respirar, sangrar o que precisa ser sangrado e, depois, mantém a cicatriz ali, exposta, na vista de todos. É assim que assustador­amente

Nick Cave abre sua apresentaç­ão na atual turnê, trazida para São Paulo em data única no Brasil, em um show Popload Gig, neste domingo, 14. Com Jesus Alone, a música de início do álbum mais recente de Cave & Bad Seeds, chamado Skeleton Tree, lançado dois anos atrás. “You fell from the sky / Crash landed in a field / Near the river Adur”, dizem os primeiros versos da canção.

“Você caiu do céu, atingiu um campo próximo ao Rio Adur”, em uma tradução devastador­amente livre. Cave perdeu um filho de 15 anos em uma queda acidental em 2015. Da dor mais devastador­a que se tem notícia (um pai/mãe enterrar um filho), o australian­o fez uma porção de canções, um disco. Skeleton Tree é um dos melhores álbuns de Cave em décadas (se equivale em excelência a Push The Sky Away, o antecessor, de 2013). Como se as feridas acumuladas pelo artista até aquele terrível 2015 só houvessem arranhado o escudo que protegia Cave. A morte do filho o estraçalho­u. Saiu dessa com um álbum que sangra poesia e dor.

Cave está tinindo na composição das letras, os Bad Seeds voam nos arranjos hipnóticos que parecem transporta­r o público para uma dimensão no qual até mesmo as notas dissonante­s (proposital­mente, é claro) se complement­am. No palco, o impression­ante é notar que canções desses dois álbuns, como a citada Jesus Alone e Magneto, dobradinha que abre as apresentaç­ões e forma o quarteto de canções lembradas de Skeleton Tree nos shows, são tão (ou mais) celebradas quanto aquelas que carregam nas costas algumas décadas de idade. Prova como Nick Cave & Bad Seeds estão no topo do seu jogo. Por isso, a noite deste domingo foi tão histórica. Testemunha­r um artista no seu auge (e com a consciênci­a disso) é raro.

Quando esteve por aqui – e Cave morou em São Paulo, na Vila Madalena, entre 1990 a 1993 –, frequentav­a bares da cidade sem muito alarde – era mais uma figura do submundo, com algum prestígio, mas pouco público. Viveu aqui por amor, aliás. Talvez estivesse mais emocionado do que o costume

por estar de volta – tocou Jack the Ripper, do álbum Henry’s Dream (1992), “porque a compomos essa aqui”, ele justificou –, mas a questão toda da apresentaç­ão de Nick Cave & The Bad Seeds transcende toda a noção geográfica. Fura o tempo. Transpassa o espaço.

O que resta é um momento único no qual Cave e banda hipnotizam os presentes com sua variação rítmica, voz profunda, os versos que fazem germinar as nossas próprias dores escondidas. Há quem chame de culto. Até pode ser. Mas o que Cave e banda fazem no palco, contudo, é um encontro com o interior e não com uma força externa. É uma comunhão com um “eu” que por vezes escondemos. A figura do músico, esguia e de branco de pele fantasmagó­rico, é uma assombraçã­o que teima em mexer no seu baú de memórias. Ao fim da experiênci­a, quase um exorcismo, sai-se leve. Cave, exaurido e suado, parece levar nossas dores com ele. Inquebráve­l. Nada mais deve ser capaz de afetá-lo.

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