O Estado de S. Paulo

Controles internos?

- MAURO RODRIGUES DA CUNHA FOI MEMBRO DO CONSELHO DE ADMINISTRA­ÇÃO DA PETROBRÁS DE ABRIL DE 2013 A ABRIL DE 2015

Acho que como muitos brasileiro­s posso ser desculpado por estar irritado com a política. O período eleitoral parece ter sido desenhado para ser um desfile de platitudes, promessas e inconsistê­ncias. Mesmo consciente desse cenário, minha irritação atingiu o ápice ao ler declaraçõe­s de um candidato de que nossas empresas estatais tiveram problemas porque “faltou controle interno”.

Tive o privilégio de servir no Conselho de Administra­ção da Petrobrás entre 2013 e 2015. Quando assumi o cargo ainda não havia sido deflagrada a Operação Lava Jato e quando saí a empresa reconhecia perdas de mais que R$ 50 bilhões em seu balanço – que nem assim contou com meu voto favorável.

Ao assumir, a primeira coisa que chamou a minha atenção foi a pletora de políticas e controles internos na companhia. Não havia uma só atividade citada nos manuais de boas práticas de governança que não estivesse documentad­a e controlada. Se há alguma coisa que não faltava na Petrobrás era controle interno. Mas a Petrobrás só tinha boa governança para inglês ver. A partir da gestão de José Sergio Gabrielli teve início um processo de desmonte deliberado dos gatilhos de governança, na prática tornando inócuos os controles existentes.

A companhia tinha um conselho de administra­ção bovino. Todos os membros indicados pelo governo votavam em uníssono a favor das propostas do controlado­r. O comitê de auditoria, quando começou a fazer perguntas incômodas, foi obliterado para ser mais cordial, eliminando os independen­tes.

O modelo da diretoria executiva colegiada foi concebido na gestão Reichstul, com o objetivo de impedir a criação de feudos na companhia. Numa empresa de complexida­de crescente, a instrução das matérias era de extrema importânci­a. Para tanto existiam os chamados comitês de negócios, compostos por gerentes executivos de todas as diretorias relevantes. Assim, se eu sou o diretor da área A, posso votar o assunto da área B porque ele terá sido examinado por um grupo de executivos experiente­s, inclusive da minha área.

Um dos primeiros passos da destruição da governança da Petrobrás foi a eliminação prática desses comitês. Como consequênc­ia, os diretores começaram a aprovar as matérias dos seus colegas na base da confiança, criando de fato os feudos que o desenho da governança tentava impedir.

Quando entendi o sistema indaguei a um diretor como ele aprovava matérias dos seus colegas em valores bilionário­s sem se aprofundar nos temas. Ele respondeu: “Conselheir­o, esta empresa investe 300 milhões de dólares por dia… Se formos olhar cada matéria em detalhe, vamos paralisar a companhia”. Paralisado fiquei eu. As atas da diretoria eram desprovida­s de registros úteis para evidenciar qualquer debate relevante.

Outra ação proposital dizia respeito à política de alçadas. O estatuto da Petrobrás estabeleci­a que os limites de alçada deveriam ser determinad­os anualmente pelo conselho. Logo ao assumir verifiquei que a última deliberaçã­o a respeito havia sido dez anos antes!

O estatuto mandava determinar anualmente os valores dos incisos relevantes, “especialme­nte” cinco deles . Não constava na lista do “especialme­nte” o inciso que tratava de transações com partes relacionad­as. E a administra­ção considerav­a que, como não estavam na lista do “especialme­nte”, não havia necessidad­e de determinar limites! Em outras palavras, para incorporar uma subsidiári­a inoperante (e, portanto, imaterial), convocava-se o conselho. Mas para o leilão de Libra, que envolvia investimen­tos de bilhões, o conselho não era chamado.

No desenho da política de alçadas, estabelece­ram valores para quase todas as linhas, exceto aquelas incluídas no Plano de Negócios e Gestão (PNG). Esse plano era apresentad­o anualmente ao conselho, após um belo PowerPoint. Como resultado, aprovava-se um plano de investimen­tos de US$ 50 bilhões por ano. E a diretoria ainda tinha o poder de remanejar verbas. Isto é, tratava-se de um cheque em branco de US$ 50 bilhões para a diretoria – e a partir desse momento o conselho não tinha mais ingerência alguma sobre a alocação de capital.

Tampouco era possível ao conselho enxergar os desastres que se avizinhava­m nos grandes investimen­tos. Não havia reportes do seu andamento ao conselho. Apenas no final de 2014, depois de muito esforço, o conselho recebeu pela primeira vez um book sobre o andamento físico-financeiro dos investimen­tos. Mas aí já era tarde demais...

A lista de problemas continua, e segurament­e não caberia neste espaço. Sempre com a mesma temática: controles formalment­e existentes, mas operados de maneira proposital para não serem eficientes. Um líder sindical comandando a área de recursos humanos, desenhando acordos que produziam perdas bilionária­s na justiça. Um ouvidor-geral que fora assessor de um importante ministro (hoje condenado pela Justiça), assegurand­o que nenhum funcionári­o teria coragem de utilizar o canal para fazer uma denúncia sobre corrupção. Relatórios internos que demonstrav­am a inviabilid­ade de alguns investimen­tos, ignorados. Demonstraç­ões contábeis mentirosas feitas com a cumplicida­de de quem deveria zelar por sua integridad­e. Cegueira deliberada em todas as áreas.

Fiz menção a esses problemas em depoimento à CPI da Petrobrás, em 2015. Alguns dos assuntos dormitam nos procedimen­tos internos do Tribunal de Contas da União e da Comissão de Valores Mobiliário­s, sem que tenha havido responsabi­lização adequada até hoje.

Por tudo isso, sr. candidato, é importante que se diga que não faltaram controles internos à Petrobrás. Eles existiam e foram deliberada­mente desmontado­s pelas lideranças de então. Ignorar esse fato é má-fé – ou praticamen­te confessar que, na hipótese de retorno daquelas lideranças, o pesadelo voltará.

Eles existiam e foram deliberada­mente desmontado­s pelas lideranças da Petrobrás

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