O Estado de S. Paulo

Compromiss­o democrátic­o

- ROBERTO LIVIANU PROMOTOR DE JUSTIÇA, DOUTOR EM DIREITO PELA USP, É O IDEALIZADO­R E PRESIDENTE DO INSTITUTO NÃO ACEITO CORRUPÇÃO

Os professore­s de Harvard Ziblatt e Levitsky, em seu mais recente livro, Como as Democracia­s Morrem examinam a trajetória de líderes autoritári­os, como Trump, Putin e o turco Erdogan, que alcançaram o poder pelas regras do jogo vigentes, apontando elementos que identifica­m a caracterís­tica autoritári­a – a rejeição ou o inconsiste­nte compromiss­o com regras democrátic­as, a negação da legitimida­de de seus oponentes, o encorajame­nto ou a tolerância à violência, assim como a censura a esses mesmos oponentes e à mídia. Ziblatt e Levitsky mostram que, após a chegada ao poder, o sistema democrátic­o foi na prática demolido com manipulaçã­o, extrema habilidade e uso das armas oferecidas pelo próprio sistema.

Acabamos de ter eleições marcadas por uma mistura de intenções, em que houve perceptíve­l renovação no Senado, em que 33 atuais detentores do poder quiseram ficar, mas apenas oito (24,2%) tiveram êxito. Isso significou dizer não a figuras como Romero Jucá, que foi líder do governo no Senado desde FHC, passando por Lula, Dilma e Temer. Assim como ao atual presidente, Eunício Oliveira, Edison Lobão e Sarney Filho, lembrando que havia duas vagas e que o fato de serem investigad­os na Lava Jato pesou.

Não só contra eles: 47 envolvidos na Lava Jato foram barrados para a Câmara. Mas há 11 deputados que estão lá há mais de 20 anos e se reelegeram – a Constituiç­ão não limita o número de mandatos consecutiv­os no Legislativ­o. Mas são 11 de 513.

Por outro lado, apesar de ser muito inferior ao ideal, aumentou 51% a representa­tividade feminina na Câmara – de 51 para 77. O número dos que estão iniciando mandato pela primeira vez na vida representa 18%. A média era de 13%. Por sua vez, o PSL, de Bolsonaro, que em 2014 elegeu um único deputado federal, agora terá 52.

Os maiores perdedores na Câmara foram o MDB e o PSDB. Ainda pendentes algumas situações sob análise da Justiça Eleitoral, esses números produzirão efeitos no quadro partidário nacional, o que muito nos interessa, tendo em vista a crise de credibilid­ade que os partidos enfrentam, a qual levou vários deles até a deixarem de usar a palavra “partido” em sua denominaçã­o, como MDB, DEM, Podemos, Patriotas, Solidaried­ade, Novo, Rede, etc.

Das 35 legendas hoje existentes, 14 correm grave risco de extinção, eis que não atingiram 1,5% dos votos válidos nacionais ou nove deputados federais em ao menos nove unidades da Federação. E correm risco porque, se confirmado esse quadro, deixarão de receber o repasse do fundo eleitoral a partir de 2019, o que pode tornálos inviáveis e reabre o debate sobre a razoabilid­ade dessa dependênci­a financeira exclusiva de dinheiro público, não se podendo ignorar que na vigência da lei que aprovou o fundão de R$ 1,7 bilhão (válida só para esta eleição) os partidos não foram transparen­tes quanto aos critérios de destinação dos recursos, sendo privilegia­dos os cupinchas dos “coronéis” desde que fossem postulante­s da reeleição.

O povo deu a resposta no voto por terem sido bloqueadas novas regras permissiva­s à renovação na reforma política, dizendo não também a candidatur­as de filhos de políticos processado­s – de Sérgio Cabral, Eduardo Cunha e Jorge Picciani (aliás, todos estes do Rio, onde um fichalimpa outsider, ex-juiz federal, desponta como favorito no segundo turno para o governo). Povo que, segundo pesquisa recente do Datafolha, acredita que a democracia é a melhor forma de governo (69%); em 1989, o porcentual foi de 43%. Entretanto, das 13 candidatur­as presidenci­ais, levou ao segundo turno duas opções que mostram, contradito­riamente, perfil autoritári­o, conforme os professore­s de Harvard.

Bolsonaro enfatiza o armamentis­mo, encorajand­o nitidament­e a prática da violência, da qual ele ironicamen­te acabou sendo vítima, num atentado à faca que quase lhe tirou a vida. Seu programa de governo contém formalment­e o compromiss­o de cumprir a Constituiç­ão e respeitar as regras democrátic­as, mas o discurso cotidiano dele e de seu vice faz o compromiss­o desbotar, não deixando de contestar a legitimida­de de seu oponente, assim como de atacar a mídia. Chegou-se a falar até numa nova Constituiç­ão elaborada por um grupo de notáveis escolhido pelo governo, sem participaç­ão do povo, que seria chamado apenas ao final para dizer sim ou não.

A candidatur­a Haddad enche o peito para dizer que quando o PT governou o País respeitou as regras democrátic­as, mas ao examinar seu discurso e seu programa de governo se percebem igualmente nítidos traços autoritári­os em vários aspectos, como o “controle social” da mídia, do Judiciário e do Ministério Público. O adversário também tem sua legitimida­de atacada sistematic­amente. E a violência é parte constante da pregação petista, tanto que a presidente do partido chegou a dizer publicamen­te que para prender Lula, morreria gente. Pura bravata, pois a prisão foi feita nos termos da lei.

E José Dirceu, que não foi desmentido, criou a nova teoria de bipartição do poder, exterminan­do o modelo secular de Montesquie­u. Para ele, o Judiciário é órgão, e não Poder. O Ministério Público deve ser um ente inútil socialment­e, sem poder de investigaç­ão; e a mídia, controlada e manietada.

Que as duas candidatur­as assumam o compromiss­o democrátic­o que o Pacto pela Democracia – coalizão de mais de 80 entidades comprometi­das com a reconstruç­ão e consolidaç­ão do ambiente democrátic­o – lhes apresenta. E que assumam também compromiss­o com as Novas Medidas contra a Corrupção e, ainda, o compromiss­o de impulsiona­r a reforma política, que inclua a possibilid­ade de candidatur­as independen­tes, hoje vedadas em apenas 20 países do mundo. Isso nos poderia trazer alguma esperança. Mas a verdade sobre a efetiva atitude democrátic­a só saberemos a partir de 1.º de janeiro.

Isso poderia trazer-nos alguma esperança. Mas a verdade só saberemos a partir de 1.º de janeiro

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